Crônicas do Titanic
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Militantes e mercenários
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Militantes e mercenários

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Os Mercenários ganhará HQ criada por Sylvester Stallone - NerdBunker

Eu sou militante. Desses daí que a twitteira descreveu. Tenho meu selinho de ética intacto. Nunca cobrei um centavo por nada que fiz. E vou contar uma coisa: não vale a pena e não é sustentável fazer as coisas desse jeito.

Porque toda atividade, todo trabalho, tem um gasto. Vou correr atrás de uma treta e tirar fotos, gasto a gasolina da ida e da volta. Preciso comer. Comprar água. As vezes compro um jornal pra disfarçar que estou lá, pra não ser preso pela polícia. Porque comunicadores populares – não sei se vocês sabem – são alvos. Tô arriscando a minha pele. E eu consigo militar apenas pela metade do mês. Meu dinheiro acaba. O resto do mês não consigo. E nem é por medo: é falta de dinheiro.

Pras pessoas maravilhosas que eu ajudo a lutar – sem teto, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras admiráveis, muitas vezes mediados por partidos políticos – eu pareço um fantasma que aparece e produz materiais do nada. Brotam textos, fotografias, vídeos. Eles não sabem como eu cheguei lá, como eu saí, se estou vivo ou morto, se eu pago aluguel como eles ou não. Além de haver uma distância considerável entre mim – fica parecendo que eu tô prestando um serviço terceirizado pra gente muito legal, mas que nunca vai ter relação comigo – eles não vão ter condição de se apropriar da política de comunicação. Porque quando eles precisarem de foto e eu não puder – e aí? Eles poderiam fazer com que eu pudesse, poderiam oferecer as condições. E se isso não fosse uma exceção?

E se isso fosse um acordo claro, construído com clareza entre trabalhadores das comunicações, militantes e essas populações que tem interesse no nosso trabalho enquanto produtores de vídeos, de fotos, de podcasts, de arte? Eu posso vir aqui se vocês ajudarem com o deslocamento. Se vocês ajudarem a pagar a divulgação do vídeo. Faz uma vaquinha. É um custo que pode ser tão importante quando o que se gasta com gasolina pra queimar o pneu. Gastar com comunicação ou não é uma decisão política. Deixar o militante se ferrar sozinho pra atuar em uma comunidade também é uma decisão política. O tipo de vínculo entre os comunicadores e as lutas deveria ser alvo de uma discussão menos moralista, menos individualizada e mais estratégica.

Que vínculo queremos entre os comunicadores e os lutadores, que papel a comunicação tem em nossas estratégias de luta e qual é afinal o nosso objetivo? É criar novas relações, disputar a sociedade já dando o exemplo? Pra mim, sim. Então devemos começar tendo relações éticas, claras, bem colocadas já entre nós. Precarizando os nossos, já começamos muito mal. Não vai durar muito. Só vai durar com os que tem grana pra se sustentar... e são essas as pessoas que a gente quer pra sempre, as que tem grana e não necessariamente vínculo?

É o tipo de pergunta que a gente deveria estar fazendo. Eu estaria muito feliz se o movimento estivesse cheio de mercenários com vínculos de trabalho respeitosos, claros e que respondessem diretamente às comunidades em luta. Muito melhor que esses heróis irresponsáveis com os quais não podemos contar – e nem é por culpa deles, é por culpa de todos nós. “Pobre é o povo que precisa de heróis”, já dizia Brecht.

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Crônicas do Titanic
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Crônicas e prosas na perspectiva (humana, social, econômica e cultural) dos soterrados, dos desterrados, dos enterrados. Dos que ficaram para trás para salvar os que ficaram pra sair antes. Dos que saíram antes. Dos trabalhadores e trabalhadoras.