O falso horizonte e o pacto suicida(2): o novo normal e a formação de um exército da morte
Aos que escolhem a luta coletiva, difícil, cotidiana saiba que nunca tivemos nenhuma outra escolha. É neste tipo de situação que surgem forças insuspeitas de defesa das nossas vidas.
Onde está a virada?
O “novo normal” não é uma alucinação. É uma aposta pra impor determinada interpretação dos acontecimentos. Ao nos colocarmos todos a lutar pelo sonho de uma amanhã melhor ou esperarmos uma amanhã melhor, também estamos nos expondo a uma decepção brutal amanhã. Os sacrifícios que fizemos até aqui podem ser vistos como uma burrada ou uma jogada de gênio. Tudo depende do que acontecer de fato amanhã. Isso é especialmente verdade entre as vertentes mais radicais de esquerda e os que se colocam como militantes, buscando coerência radical entre palavras e atos. O nível de exigência é também o alto nível de frustração. Quanto maior o isolamento, pior esse efeito. Esse efeito vale aqui para o Brasil, vale para os Estados Unidos e para o Reino Unido. Vale, basicamente, para todos os países co-participes da Hora do Abate .
O problema é que no jogo de resistência apesar de quem apostar na quarentena ser maioria - de 76% baixando até 60% - agora estamos expostos a um alto nível de assédio (“cuspes, xingamentos durante o trabalho”), a ameaça da fome e coação econômica, além de expostos aos assassinos que tão apostando no descuidado com tudo e já não podem voltar atrás.
No primeiro gráfico, uma queda e uma retomada do vírus dão a impressão de segunda onda. No segundo, da realidade brasileira, uma ligeira queda na velocidade da infecção dá impressão de melhora, mas nunca houve de fato queda na propagação do vírus.
Esse movimento descrito no gráfico aparentemente se repete o tempo todo. Com o apagão de dados só fica pior: parece que está o tempo todo melhorando e piorando, amanhã talvez melhore, piorou; os jornais ficam inventando sinais de recuperação inexpressivos (como essa do aumento em 50% do ‘índice de imunidade da população’ que na verdade qer dizer que passam essa sensação e depois nos frustram. Cada mudança nas condições que sofre uma piora decisiva é alvo de urgência e ao mesmo tempo de ataque do governo e militante.
Casos como o do hospital do Rio de Janeiro, em que uma família em luto subitamente se transforma no inimigo por uma incitação do presidente, são de acabar com os nervos de qualquer um . Esse desgaste dos nervos pode resultar em qualquer coisa, menos em luta efetiva e cuidadosa contra uma doença. É aí que entram os spoilers de Shingeki no Kyojin![1]
Como se forja um suicida: falsas promessas
Attack on Titan ou Shingeki no Kyojin, de Hajime Isayama (1986-) trata da formação do caráter do protagonista, Eren Jaeger, como soldado e como ser humano que encarna a luta pela liberdade. O protagonista vive em uma sociedade cercada por altos muros e de fora desses muros são meio-gigantes meio zumbis chamados Titãs com aparência humana, grotesca, que comem qualquer humano que se aproxime.
A esperança de Eren é poder viver livre, sem cercas e o único obstáculo além da sua vontade e das barreiras sociais são monstros que poucas pessoas conseguem enfrentar, que muitos morreram tentando. Seu amigo, Armin Arlect, contrabandeia um livro de história dos seus pais desaparecidos e compartilha a fábula que vai lhes dar alguma esperança: pra além dos muros da cidade existe um oceano, vulcões, terra sem fim. Liberdade. Além de viver sem limites, pra além do medo e da morte reside a esperança de poder viver livre também das ameaças diretas e existenciais. Essa esperança sempre mostra o lado positivo da jornada formativa do Eren, era por ela que fazia sentido não sacrificar as amizades, a família, os amores, os inocentes, porque era pra viver algum futuro com eles que fazia sentido não morrer nem sobreviver de uma forma que não valesse a pena. O sonho então complementava o dever da luta com o laço coletivo e fazia com que repensassem, algumas vezes, saídas que implicavam em sacrifício ‘excessivo’ – afinal, se todos morressem, não adiantaria nada. “Especialmente meu amigo” tal ou qual. A amizade e a solidariedade permitiam alguma humanidade apesar dos sacrifícios supostamente necessários para enfrentar os “monstros” desumanos que estavam no seu caminho.
Quem viu a última temporada do anime (ou vem acompanhando o mangá) observa que há a descoberta de que a realidade não é tão simples. E, na verdade, os inimigos deles são o restante do mundo inteiro que os vê como ameaça em potencial. Pra além do mar – depois de perderem quase tudo e todos para chegar à praia – só existem mais inimigos. A cena que finaliza a temporada mostra a ruptura do sonho – enquanto Armin está extasiado com a realização do que apenas imaginava, Eren está mortificado porque é exatamente como “ele se lembra”. E se a confirmação de Armin o deslumbra, a de Eren o desola. O protagonista pergunta pro seu principal amigo e aliado: “Se nós matarmos todos os inimigos que estão além do mar, será que conseguiremos ser realmente livres”? O amigo, que tinha falado tanto do futuro e da necessidade de sacrifício , não tem resposta. Tudo mudou. O sonho se desprendeu do dever, da imaginação, dos laços concretos e daí o caminho daí pra frente é solitário e sem hesitações. Ninguém havia prometido nada, mas agora ninguém mais ia prometer. É aí que Eren vai desenvolver o discurso que aparecerá na próxima seção.
Imagine agora uma pessoa que sofre esse processo sucessivamente, que tipo de sujeito vai se formar ali. É o sujeito que esperava que a “quarentena” resolvesse algo por ela, os militantes que lutaram e deram tudo e mesmo assim não conseguiram fazer quarentena, os que brigaram com tudo e todos porque a quarentena era uma farsa (a esquerda e a direita), todos se igualam na brutalidade violenta que sofreram váris e várias vezes de ter seu sonho frustrado. O momento em que reconhecemos que perdemos e partimos para tentar desenvolver uma nova resposta é delicado, frágil e é justamente nesse momento que entra a operação do Novo Normal.
O que estamos a fazer ao “voltar ao normal”? Que tipo de gente estamos a forjar?
Soldados suicidas. Que vai reproduzir isso em escala menor. Gente que não tem interesse, nem de olhar para dia da amanhã. E talvez sejam essas as pessoas que as organizações de esquerda queiram e precisem para combater “nas ruas” a militância de direita, ao invés das pessoas “moles” e “sentimentais” que estão de olho nas mortes e como podemos aparar a queda dos mais frágeis. Reflexões, propostas de ações concretas que dão muito trabalho para fazer, tem que ser refeitas toda vez que são chacoalhadas pelos inimigos de direita e pelos descuidos da esquerda, quando esta fala como se não houvesse nada a fazer além do suicídio.
O que vai acontecer em volta desses soldados suicidas que ficarem infectados? Possivelmente ele ou alguém próximo pegará a doença. Um surto de infecções. Zero estrutura. Ninguém pra ajudar, porque protesto não serve pra isso. Tensão no máximo. E o presidente Bolsonaro aparecerá, por meio de seus asseclas, perguntando, a culpa é de quem? É de quem defende a quarentena, de quem não se expõe. Sua política desastrosa que resultou em mais mortes que qualquer guerra que o Brasil possivelmente participaria vai virar modelo de segurança porque estaremos nós a aplicá-la. Esse é o resultado em médio prazo da continuação dessa tática, do pressuposto do descuidado estrutural que é convocar gente dessa forma dispersa e desesperada.
Se apenas as palavras de Bolsonaro incitando a furar a quarentena influenciaram negativamente no índice de isolamento social e se sabemos que as manifestações contra a quarentena e a favor do presidente resultaram em maior taxa de contágio não faz o menor sentido não pensarmos como podemos evitar que nossos protestos criem efeito semelhante? Nossas palavras e atos importam.
Como protestos contra a morte podem ter consequências diferentes do que os contra Não consigo respirar aqui, especialmente na parte 2 e na parte final Estádio das Coisas. A conclusão: Precisamos nos responsabilizar por nossas ações, por nossos atos, por nosso futuro. Para que consigamos respirar Deixemos o niilismo para os que buscam a morte.
Está na hora de tocar violino para acalmar os passageiros...
Existe saída? Claro que sim. Mas primeiro precisamos sair do impulso suicida. Temos que parar de ficar gritando “LUTAR! LUTAR! LUTAR!” pra si mesmo ou pros outros, abrir o ouvido pras mortes e para desgraça acontecendo em nossa volta. Solidarizar, oferecer sentimentos, ajuda concreta. Cuidar de si, cuidar dos outros. Montar estruturas de solidariedade e cuidado coletivo. Atitudes coletivas mais estratégicas, visando paralisar locais de trabalho, ações virtuais de ataque a patrões ou políticas específicas. Arriscar sabendo por que, pelo que, com quem e podendo ter um retorno com avaliações constantes se valeu o risco ou se vale a pena continuar fazendo o mesmo. O episódio 23 de Luz no Fim da Quarentena oferece uma boa saída.
Trabalhadores estão montando uma grande estrutura (descentralizada, mas grande) de articulação de cestas básicas, voluntários para fabricar EPI’s, o rastreamento da covid-19 pressupõe uma ação coletiva de base no Brasil onde hoje ela é inexistente trabalhadores de aplicativo que estão no front vem alvejando patrões e setores específicos com ações e posições que podem e várias vezes podem e acabam sendo recuperado pelos patrões, claro, mas é melhor que paralisia ou suicídio. E pelo menos aprendemos algo.
Houve um passo importante nas últimas semanas que foi dado pelo Observatório de Favelas ao articular vários grupos de favela em torno da reinvidicação dos dados e de uma política governamental que reforce suas iniciativas ao invés de sabotá-las:
“Ambos os pontos aqui explicitados consolidam, diante de circunstâncias históricas e atuais, uma escolha política por seguir invisibilizando e negando direitos a pessoas e territórios que carregam consigo o funcionamento das cidades e suas economias. Definem, ao fim e ao cabo, os cidadãos dispensáveis, condenados pelas institucionalidades à morte, por vírus ou tiro. Direito à informação e à garantia de medidas mínimas de isolamento são centrais para que moradores de favelas e periferias, já atingidos por violências estruturantes da sociedade brasileira, reiteradas por categóricas manifestações institucionais racistas, sexistas e classistas, possam de fato ter direito à vida e à saúde plena no contexto do que estamos vivendo”.
Direito à vida para poder ter calma, tranqüilidade; direito a informação para poder decidir e planejar coletivamente. Nessa base, conseguimos sobreviver sem virar homem bomba. A luta é longa. Eles estão preparados em médio prazo para criar um “novo normal”. Temos que estar preparados para defender o nosso normal, em que as vidas trabalhadoras são prioridade.
Ilusão hoje só vai nos atrapalhar e jogar o jogo do fascismo que está se formando no Brasil. Melhor: não precisamos de ilusão. Basta sermos sinceros sobre o medo real que passa qualquer militante e trabalhador, medo de morrer e perder entes queridos e vontade de lutar contra isso. Com essa base muito mais sólida que qualquer acordo de cúpula é possível fazer bem mais do que está sendo feito por aí. E bem mais amplo: ainda somos 60%! Estamos em legítima defesa defesa e encurrlados. É neste tipo de situação que surgem forças insuspeitas de defesa da nossa vida e da vida das pessoas com quem nos importamos, como é possível verificar no backstory de Mikasa Ackerman.
Ultimo aviso aos coveiros e aos jovens camaradas
“Eren: Eu fiquei pensando nos últimos dias nesse hospital. Como eu fiquei assim? Minha mente e corpo estão exaustos. Minha liberdade foi tirada de mim. Você até sente que está perdendo sua identidade. Se você soubesse que iria acabar assim, ninguém jamais entraria na guerra. Mas todo mundo tem algo que os está empurrando, para dar esse passo para dentro do inferno. Para a maioria das pessoas, essa coisa não é sua própria vontade. Eles são forçados a fazer isso pelas pessoas ao seu redor ou por seus arredores. Mas aqueles que se empurram nessa direção, o inferno que eles vêem é diferente. Eles vêem algo além desse inferno. Pode ser esperança. Pode ser ainda mais um inferno. Você nunca vai saber. Se você não continuar no caminho que você escolheu, se você não seguir no inferno que você escolheu, você nunca vai saber se tem algo além”. Capítulo 97: De Mão em Mão
A muitos que se exasperam com a luta virtual como morte do ser de luta, eu proponho a seguinte reflexão. 1) Não é porque existem lutas fora do controle e da vista do sujeito que elas deixam de existir. 2) Depois, existe uma diferença significativa entre entrar no inferno por conta própria e ser empurrado pra lá. É muito mais fácil sair quando somos empurrados. É muito mais difícil depois que empurramos. É outro inferno. E os que insistem que passar pelo inferno é o melhor caminho, podem acabar criando uma situação em que se encontrarão isolados por um inimigo que não disfarça seu interesse e planejamento em exterminá-los primeiro.
Não há ser vivo que consiga salvar outro que cavou a própria cova. Vamos ficar juntos na superfície, vivos, bem e junto da maioria dos trabalhadores que ainda insiste em lutar contra o aumento da infecção.
Se estiverem entediados e buscando entretenimento, melhor ver anime ou ler um mangá. Eu recomendo Attack on Titan. Aos que escolhem a luta coletiva, difícil, cotidiana saiba que nunca tivemos nenhuma outra escola.
Essa é a parte 2 e final de uma série. A primeira parte (“O falso horizonte”) pode ser lida aqui.
NOTAS
[1] A reflexão sobre Attack on Titan é fundamentada em dois vídeo-ensaios sobre a série: Eren Jaeger hás Become the Monster por Soul e Attack on Titan is incredible now por Gigguk. Nos dois vídeos encontrarão todas as referências que usei.