Não consigo respirar (2): Quais os motivos do receio? Protestos pioram pandemias?
Protestos pioram pandemias "só se eles quiserem". Pior que é isso que descobrimos comparando os protestos contra o lockdown e os contra as mortes policiais.
Esse texto é a parte 2 de uma série. A parte 1 pode ser lida aqui.
Quais são os motivos, então, do receio dos protestos durante a pandemia do covid-19? Medo do golpismo fascista? Não era medo do golpe que pautava essa discussão entre os trabalhadores e profissionais da saúde, ao menos os dos Estados Unidos, mas que “apenas máscaras podem não ser suficientes”. Como assim?
Um artigo do médico Marc Siegel chamado “Os protestos de George Floyd criam risco de uma ressurgência mortal do covid-19” sintetiza muito bem o melhor dos argumentos técnicos e políticos contrários aos protestos como espaço de infecção:
(...) máscaras ou outros revestimentos faciais não são uma alternativa real para o verdadeiro distanciamento social, especialmente quando você considera que alguns estudos demonstraram que gotículas respiratórias podem escapar de uma máscara, sem mencionar o fato de que o uso de revestimentos faciais para evitar a disseminação assintomática do COVID-19 nunca foi estudado. (...)Além disso, quando as pessoas ficam chateadas, distraídas ou agitadas do jeito que estão em uma manifestação ou protesto, elas podem esfregar o rosto e mascarar inconscientemente, descartá-las inadequadamente ou reutilizar uma velha e suja que acaba concentrando o vírus. (...) pessoas assustadas, zangadas ou apaixonadas tendem a tomar menos precauções
Aqui se encerram os motivos técnicos que trata das formas de transmissão do COVID-19 hoje e se os protestos são espaços de maior ou menor risco para a transmissão. Avaliava-se então que eram. Por que não foram? Isso tem a ver com a argumentação mais ampla do doutor.
O parâmetro do bom doutor era esse…
O receio não é porque o protesto vai “provocar o fascismo” como se diz aqui no Brasil, mas porque literalmente não basta dar mascara pra falar que existe cuidado. Precisamos ver o ontem e pensar o dia de amanhã. A preocupação é outra: é preciso repensar todo o sistema de saúde e a nossa sociedade. O cuidado coletivo, a responsabilidade coletiva pressupõem outra perspectiva de sociedade. Nas palavras do Dr. Siegel:
É mais provável que você esteja cuspindo sobre uma máscara meio pendurada quando falar com raiva. É muito mais provável que você espalhe vírus se estiver realmente infectado. Muita coisa foi feita com o uso de máscaras, muitas pessoas que as usam erradamente pensam que é tudo o que precisam fazer para se proteger do COVID-19. (...)
Lembre-se de que muitas das pessoas que protestam contra a terrível morte de George Floyd estão em grupos socioeconômicos desfavorecidos e em maiores riscos de adquirir e ter complicações do COVID-19, em parte por causa de condições preexistentes e em parte por causa do acesso inadequado a serviços de saúde. Uma máscara é um pouco mais do que um band-aid de saúde pública para essas pessoas desfavorecidas. Precisamos ajudá-los a acessar as estratégias e tratamentos de prevenção de que precisam desesperadamente. Distribuir máscaras como um gesto para um público irado não é o caminho para continuar a luta contra um vírus mortal e altamente contagioso. Muito mais precisa ser feito. Nossa doença como sociedade vai além do COVID-19, para o problema central da disparidade na assistência à saúde.
Acontece que isso não escapava aos próprios manifestantes. As pessoas que estavam ali, não estavam por uma raiva descontrolada, não estavam inconscientes da pandemia, não estavam “querendo morrer junto com a máquina”. Por isso não cuspiram, não gritaram, não se descuidaram. Pelo contrário. Mas é possível ter tanta diferença nas manifestações? É possível repensar a sociedade só pra ir numa manifestação?
Sim, é possível.Vamos tentar, então mostrar como existem duas manifestações, dois grandes movimentos políticos de nosso tempo: um movimento da morte, do capital, que se manifestou contra a quarentena; e um movimento da vida, proletário, que se manifestou pautando como carro chefe a violência policial e o cuidado. Eles se manifestam com motivações, formas, modos e objetivos bastante diferentes. Com isso, também apontam para amanhãs bastante diferentes. Essa diferenciação vai nos ajudar a entender o que aconteceu e o que pode ser feito.
Eles combinaram de nos matar….
Os protestos contra o lockdown, manifestações pela morte seletiva, estão bem sintetizados em suas motivações e composição nesse artigo que fala das suas principais sete marcas: 1. A pobreza é tabu, mas o trabalho é “essencial”, 2. A ameaça do vírus é grave, 3. Cartazes anti-ciência estão à margem, 4. As pessoas querem combater o vírus de maneiras familiares, 5. ‘Tirania’ depende de quem governa – não de como governa, 6. De brancos para brancos, 7. Dividido e distanciado: é um movimento?
É importante, ao tratarmos deles, que não façamos caricatura. Por exemplo, não faz sentido dizermos que são movimentos que, ao menos nos EUA, não entendem a ciência do coronavírus. Entendem sim. Entendem que vai morrer gente. Não é “burrice”, é outra coisa.
Mas o essencial de que quero tratar está no ponto de classe (“todos os trabalhadores são essenciais”) que unifica trabalhadores e patrões de forma reacionária na “defesa do emprego”, no caráter segregado (apenas brancos) e no individualismo que se reproduz no interior do movimento (é um movimento de indivíduos isolados, não de coletivos que se integram e se cuidam). São movimentos contra o cuidado. Isso se traduziu muitas vezes literalmente em um enfrentamento gráfico dos trabalhadores da saúde.
Qual é a consequência dessas características? Também para eles muitos epidemiologistas previram que haveria um pico de casos devido ao comportamento contra o distanciamento social e contra a higiene dos manifestantes. Esses epidemiologistas dizem que os protestos podem ter influenciado em espalhar o vírus em uma nova onda nacional em maio desse ano.
O que temos de fato, de registro seguro? As infecções, hospitalizações e mortes aumentaram significativamente no país duas semanas após esses protestos: o oposto do que foi registrado em relação aos protestos contra a morte de George Floyd. Não é pra menos. O objetivo explícito deles era lutar por uma política de sacríficio dos fracos. O método correspondeu ao objetivo e a forma de organização.
E os protestos contra morte de George Floyd, o que eram? Bem, eles eram o oposto em método, objetivo e modos. Por isso, teve resultados opostos. Explicaremos na próxima parte essa diferença, mas fique demarcado porque o protesto contra a quarentena tinha motivos específicos pra ser um foco de infecção.
O erro fundamental de supor que qualquer protesto vai aumentar infecção é supor que todo protesto vai carregar o individualismo anti social dos protestos contra o lockdown. Mas se não carregam isso, o que acontece nesses protestos? É possível protestar de outra forma?