Não consigo respirar (3): máscaras e cartazes ou "nós combinamos de ficar vivos"
Um manifestante sintetizou assim a lição dos protestos: "Se você quer ficar vivo nessa pandemia, coloque uma máscara e comece a se movimentar"!
“Não esqueça sua máscara”, diz a mãe, “devíamos ter trazido nossos cartazes”, resmunga de volta a filha. Num brilhante ensaio publicado no LA Times, Mary McNamara descreve como entendeu melhor sua filha conversando sobre o protesto e a necessidade do cuidado. Eles foram fazer uma viagem que acidentalmente acabou passando por muitos protestos e, por conta disso, os filhos resolveram carregar cartazes em todo lugar tal qual carregavam alcool gel e máscaras. Ela fala como em um dos hóteis em que passou os trabalhadores também usavam máscaras, mas nenhum dos hóspedes usava. Na verdade, “a maioria das pessoas que vi com máscaras eram aquelas protestando. Em Columbia, Denver e Boulder, a maioria daqueles carregando cartazes também vestiam máscaras, e muitos daqueles entregando água também ofereciam alcool gel para as mãos também”. Ela descreve como viu uma manifestação de milhares de pessoas fazer uma perfomance em que ficaram quase nove minutos cantando com o rosto virado para o chão, sem perigo de infectar outras pessoas, “Não consigo respirar”, o tempo exato que George Floyd ficou antes de morrer, antes de seguir para o objetivo do protesto.
Vários médicos epidemiologistas simpáticos aos protestos tiveram debates intensos antes dos protestos. Alguns quebraram a cabeça e acharam uma solução: desenvolver uma forma de cuidado específica para aqueles que queriam se revoltar coletivamente. Colin Furness, epidemiologista contrário a protestar apenas virtualmente, se encarregou disso: "Lembre-se de que as máscaras protegem os outros", disse ele. "Então você quer olhar em volta e ver quem não está usando uma máscara e dar muitos passos para trás”."Para protestar com segurança durante o # COVID19, deixe seu cartaz falar, seu telefone cantando e use uma máscara", escreveu outra médica no Twitter.
Máscaras e cartazes. Em que pese o descuido da manifestante em primeiro grau aqui de baixar a máscara no exato momento da fotografia, é perceptível que todos os demais estão mascarados. Estão com algum distanciamento. Estão com cartazes previamente desenhados. Todos levantando os braços sem se acotovelar. Ninguém gritando ou cuspindo no outro. Estávamos errados, errados, errados. A infecção só aumenta se a manifestação for composta por indivíduos isolados, que estão se lixando uns para os outros, sem preparação prévia nem esperança pro dia de amanhã. A máscara não exclui o cartaz, nem o inverso. Um reforça uma forma do outro. E que forma é essa? De que forma isso é feito?
O modelo de infecção dos epidemiologistas, que eu estava adotando acriticamente, pressupunha pessoas irresponsáveis, individualistas, desesperados pela situação. Que tipo de pessoas estavam indo para os protestos? Eram as mesmas das aglomerações de sempre ou dos protestos contra o lockdown? Vamos fazer um contraste que foi feito por uma manifestante de Nashville:
Vejam quem está de máscara e quem não está. Espaço aberto vs espaço fechado. Outro depoimento em que um sujeito contrasta sua experiência de cuidado coletivo no protesto com um encontro que testemunho nos subúrbios de classe média: ele era o único usando máscara. Comentando a notícia que os protestos não haviam causado um pico de infecção em Nova York , um usuário do twitter relatou (com mais de cem mil replicações, como pode ser visto aqui:
"as pessoas em protesto estão distribuindo máscaras e desinfetantes um milhão por cento melhor do que o governo e não estou exagerando nem um pouco"; "Se você está se perguntando onde estavam os anarquistas antes dos protestos com todo esses EPI gratuito e comida para pessoas eles ainda estavam fazendo distros de ajuda mútua antes disso, idiotas lol"
Com isso fica claro o que de fato aconteceu. A manifestação não foi um espaço de concentração de descuidados inconsequentes. Foi um espaço em que puderam se integrar os coletivos e militantes isolados que estavam desenvolvendo práticas de solidariedade e luta durante meses em que o governo Trump também sabotava a quarentena. Por isso, tinham acumulado o saber fazer, tinham acumulado vontade de aprender, vontade de dialogar também. Eram pessoas que estavam a tempos lutando sozinhas em seus bairros, suas casas, seus locais de trabalho. Descobriram que apesar de estarem sozinhas, não estavam isoladas na sociedade. Assim como aqui, eram maioria.
O princípio da oposição entre esses dois movimentos pode ser encontrado, então, na forma de expressão e no modo de relacionamento entre os manifestantes. O movimento da morte infecta, descuida. O movimento da vida amplia o respeito, o cuidado, a organização. Esse contraste é visível na postura, na disciplina e na própria estética dos dois movimentos.
O que conseguiram fazer, afinal?
Assim eles quiseram e souberam ensinar rapidamente aos novos como se cuidar e transmitir o conhecimento pros demais. O cuidado com a vida se transformou no novo normal dessa gente toda que se manifestou em todos os estados dos EUA. Mostraram possível sim protestar de forma coletiva pensando no dia de amanhã: basta se organizar.
Com isso, até agora e sem um levantamento exaustivo, no que diz respeito à polícia esses manifestantes cuidadosos arrancaram uma promessa desesperada de reforma policial de Trump, dos democratas e de políticos de todo o espectro nos 50 estados e centenas de prefeituras.
Mais do que isso: arrancaram pelo menos 40 milhões de dólares de horas extras que seriam pagas aos policiais extorcionários de Los Angeles, fizeram com que a Polícia de Nova York se apressasse a dissolver suas unidades mais odiadas de policiais à paisana pra tentar mostrar boa vontade – algo parecido seria a PM dissolver a P2 em algum estado – e declarar o seguinte: “Ficamos felizes com as propostas de reforma, mas achamos que as mudanças mais importantes vem de dentro”! Uma declaração que seria muito bonita se não fosse o oposto do que que havia dito o chefe da polícia na semana anterior em que bradavam pelo direito de bater impunemente. O recuo e o medo de perder espaço pra esses protestos de gente cuidadosa e responsável uns com os outros é evidente. Ele está com medo!
Protestos combatem a pandemia e a morte?
Tudo indica que quando são organizados para fazê-lo, sim! Nova York mesmo depois de dezenas, centenas de cenas de enfrentamento com a polícia, não causou nenhum pico de infecção na cidade.
No meu primeiro artigo demonstro que esse efeito foi comprovado também em Minneapolis, cidade original dos protestos, assim como Seattle, onde eles tiveram maior visibilidade. No meu segundo artigo mostrei que os protestos contra a quarentena tiveram efeito oposto, geraram um pico de infecções. Agora expliquei porque e como os protestos contra as mortes policiais tiveram o efeito que tiveram.
Na próxima parte tentarei mostrar em que condições vai se reproduzir esse fenômeno no Brasil e porque é importante nos prepararmos.