Contar nossos mortos
Contra o cinismo da direita e o desespero de uma esquerda adaptada, devemos mostrar que sabemos contar quem são nossos mortos, quantos são e que eles não sairão barato
O Bozo venceu. Não importa o que vai acontecer com a pessoa dele, se vai ser impedido, removido, interditado, preso, etc.; isso não faz a menor diferença e está longe de ser a questão principal. O país foi bolsonarizado. Aproximadamente 1 mil pessoas continuam morrendo por dia, e deve continuar assim durante meses, ou até piorar, mas as autoridades e a população em geral simplesmente decidiram que não se importam e que a vida deve voltar ao "normal", custe o que custar, morra quem morrer. Instalou-se o salve-se quem puder, exatamente o que o Bozo queria desde o começo, e contra o qual não se apresentou nenhuma alternativa.
Será mesmo? Recebi essa corrente de camaradas de esquerda no Zap. Está circulando por aí. Acabamos de chegar no limiar dos cem mil mortos pela covid-19. Sai no noticiário que as mil mortes não nos afetam e a indiferença toma conta. Mas será mesmo? Temos que lembrar, como a Raquel Rolnik descobriu, que a circulação para o trabalho é responsável pela maior parte das infecções e esta é responsabilidade dos patrões e dos governos que flexibilizam quarentenas. Então, a circulação das pessoas na cidade que resulta em infecção é em boa parte compulsória, não se deve a nenhuma indiferença.
Mas existe uma outra indiferença em relação às mortes - existe uma falta de comoção social com as mortes? Inexistem, hoje, manifestações públicas de massa. Isso é um fato. Mas inexistem manifestações? Depende de onde você olha.
Porque não foi com indiferença que os colegas de Rosa Maria me contaram da morte dela – foi falando de cada uma das coisas que sentiriam falta na sua ausência. Aquela comunidade escolar sentiu essa morte profundamente. A morte de outro colega de trabalho os levou a produzir uma Nota de saudade em formato de vídeo.
Não foi com indiferença mas com empatia e mobilização na forma de um cortejo solene em solidariedade às família que a comunidade escolar, sindical e os amigos de Pedro Borges dos Reis reagiram a sua morte. Disse-me uma participante do cortejo que ajudou a colaborar no registro:
“Tem mais uma atitude de empatia que precisamos tomar. Ontem, inclusive você me ajudou e a meus colegas e povo de São Luís a mostrar que podemos ser solidários quando uma família perde uma pessoa para a Covid. A família não precisa estar sozinha no cemitério. Podemos organizar um cortejo com todas as medidas de segurança e irmos até o cemitério. De lá podemos falar, podemos aplaudir, podemos esperar a família sair e ver que estamos lá esperando. Só quem vê um parente ser sepultado sozinho, sem amigos sabe a dor. Não podemos entregar para visitas, mas podemos reunir e irmos a porta levar flores. A solidão da família precisa ser tratada com empatia".
Já com Evalísio Silva Santana não houve teste nem antes nem na hora da morte – não se sabe do que ele morreu e a família ia achar ruim que eu colocasse que morreu de covid-19. Foi negado esse registro e conhecimento da causa morte definitiva.
No entanto, o mal súbito (derrame seguido de pressão muito alta) que acometeu esse agricultor, compadre de várias comadres da região – também acometeram vários outros trabalhadores da mesma idade na mesma região de Jagaquara, Bahia, na mesma semana. Aproximamo-nos, então, de um reconhecimento de uma causa comum para a morte, de uma superação do isolamento. Longe, muito longe de qualquer indiferença.
Porque nem eu nem as pessoas em volta tratamos essas mortes com indiferença? Porque nos propusemos e pudemos a gastar um tempo com elas. A pensar sobre as pessoas que perdemos. O que perdemos. Quanto e como nossa vida vai mudar sem elas. Eu me dispus a ouvir essas pessoas que perderam gente querida e ajudar a contar – o tanto que foi perdido e quem está sendo perdido.
O simples ato de rememorar juntos, ajudarmos uns aos outros a contar nossas histórias, já sabota essa “engenharia da indiferença” que Bolsonaro pretende montar. Mas é pouco. Precisamos avançar mais nesse sentido. Tenho algumas propostas e questões para quem não pretende ficar parado esperando morrer, deixar morrer e deixar que nossos mortos sejam eliminados:
Lutar por dias/horas/minutos estaduais, municipais e federais em homenagem aos mortos pela covid-19 - tal como Witzel fez no Rio de Janeiro. Que sejam dias de descanso em que seja possível parar pra de fato rememorar, pensar no que foi perdido.
Produzir obituários de texto, vídeo ou aúdio no estilo do Inumeráveis (tem o básico pra fazer aqui) mas a prioridade ser circular entre as pessoas diretamente afetadas. Dessa forma, se produzem relações de afetividade não indiferentes.
Como podemos produzir rituais coletivos pra sentirmos essas mortes com dignidade, respeito e segurança? Como poderemos fazer para manter os registros e depois nos mobilizarmos por justiça tal como já começou a se fazer na Itália?
Todo mundo se comoveu, com razão, com a cena do pai lutando pra recolocar a cruz sobre seu filho morto no início da pandemia. É porque a solidariedade que se gera em torno da morte não deve ser subestimada. E não devemos ter medo de mobilizá-la. Como disse o pai: "Respeita a dor das pessoas. Tem que respeitar".
Vamos começar respeitando nossa própria dor, a de quem está perto. Mobilizar a partir disso. Será possível?