A revolta popular de Manaus e os dilemas do lockdown (3)
Se não for colocada em discussão propostas para acolherem os informais em suas vulnerabilidades específicas, irão inevitavelmente estourar outras revoltas dirigidas e apropriadas pela direita
Essa é a terceira parte de um texto de três partes. A parte um pode ser lida aqui e a segunda parte pode ser lida aqui.
A revolta popular de Manaus e os dilemas do lockdown
Começamos pelo fim. Hoje, o estado de Amazonas vive novamente sob um lockdown. A decisão vem após uma sentença judicial e recomendação do Ministério Público, MPC, MPT, DPE e DPU que só se libere as atividades não essenciais ao menos quanto 15% das UTI’s estiverem liberadas. O lockdown vai até o dia 17 de janeiro pela data que foi homologado.
Ainda assim... vitória do movimento?
O governador Wilson Lima anunciou um pacote de incentivo e de medidas fiscais no valor de R$140 milhões – depois de ter sido forçado a recuar no lockdown pelos protestos. Entre as medidas:
- Redução de ICMS de 3,5% pra 2%
- Postergação do recolhimento de impostos
- Suspensão por 60 dias das intimações e notificações dos auditores fiscais; bem como os prazos pra autos de infração, assim como os atos de inscrição de dívida ativa e os ajuizamentos de execução fiscal.
- Linha de Crédito Emergencial da Agência de Fomento do Estado do Amazonas (Afeam), no valor de R$ 140 milhões, para micro, pequenas e médias empresas, profissionais liberais e produtores rurais
Já o prefeito de Manaus que havia criticado o governador Wilson Lima pelo lockdown questionando “por que não havia feito antes” e havia prometido distribuir remédios para combater a COVID-19 também teve que tomar outras medidas. Decretou um estado de emergência de 180 dias instituindo o teletrabalho e, mais significativamente, proibiu o corte do serviço de água ou de esgoto por inadimplência até 31 de março de 2021 para os usuários mais pobres, que estão inscritos na tarifa social. A rede municipal de ensino que estava falando de voltar as aulas em janeiro teve que recuar e anunciar um possível retorno apenas em março.
E não é pra menos. A situação da COVID-19 está grave. A prefeitura teve que anunciar aumento no número de gavetas em cemitério, câmaras frigoríficas voltaram a ser instaladas nos hospitais para lidar com o excesso de corpos e os cemitérios chegaram a ter fila de carros funerários.
Quer dizer que a situação está pacificada? Longe disso. Apesar da manifestação convocada para o dia 5 de janeiro ter sido fracassada, talvez por um medo manifestado nos múltiplos pedidos de habeas corpus preventivos para manifestantes, houveram ameaças às autoridades como juízes e governadores nos grupos de mobilização e revolta da cidade.
Isso não é novidade para os manauaras. Em maio de 2020 lidaram com cenas semelhantes. E, no entanto, em 26 de dezembro de 2020, se revoltaram contra o decreto de lockdown do governador Wilson Lima e obrigaram a recuar e manter as atividades comerciais abertas por mais alguns dias. Por que isso aconteceu? Como isso aconteceu?
A revolta popular de 26 de dezembro
O que chamo de revolta popular não é por dar um caráter positivo ao popular mas por uma similaridade aos protestos que se generalizaram em junho de 2013 e, pra além dessa jornada de protestos, são presentes no cotidiano das grandes cidades brasileiras nas lutas em torno do transporte coletivo urbano. Como disseram Leonardo Cordeiro e Caio Martins Ferreira no texto Revolta Popular: O limite da tática, as revoltas populares são:
“um processo de fôlego curto, mas explosivo, intenso, radical e descentralizado. As primeiras manifestações atuam como ignição de uma mobilização que extrapola o controle de quem a iniciou – que perde toda a capacidade de interrompê-la. Há uma escalada de ação direta: ocupação massiva e travamento de importantes artérias da cidade, enfrentamento com a polícia, ataques ao patrimônio público e privado, saques. Ao prejudicarem a circulação de valor e lançarem uma ameaça de caos – desobediência generalizada –, os protestos, que não respondem a um representante com quem seja possível uma negociação, forçam o governo a recuar para restabelecer a “ordem”.
Vamos começar pelo decreto de 23 de dezembro. Instituído “de uma hora pra outra” por um governo que era percebido como omisso em relação a pandemia em outros momentos, ele proibiu – durante o período de maior lucratividade que serve como momento de poupança para muitos – as atividades do comércio, restaurantes e – o que mobilizou uma camada significativa de pessoas – proibiu qualquer venda de materiais por vendedores ambulantes. Vale lembrar que esses comércios e restaurantes tem, por sua vez, vários trabalhadores informais entre seus dependentes diretos além dos empregados formais. Pois bem – por que isso causou tamanha revolta nesse momento e por que justo em Manaus a coisa explodiu?
O emprego formal vem declinando decididamente na cidade de Manaus desde 2015. Essa visualização mostra a evolução dos vínculos de emprego formal de trabalho nas últimas décadas no munícipio e a evolução não vem favorecendo os empregados formais da cidade.
Além disso, o estado do Amazonas é campeão nacional em proporção de trabalho informal. Das 1 milhão 550 mil pessoas ocupadas no Estado do Amazonas em 2019, 819 mil pessoas trabalhavam de maneira informal. Em Manaus, das 873 mil pessoas ocupadas em 2019, 333 mil estavam na informalidade: 38,2% dos trabalhadores. A tendência esse ano com a pandemia é que essa parcela tenha aumentado. Manaus também tem 636 mil beneficiários do auxílio emergencial – benefício que acabou formalmente em dezembro, o que certamente deve ter mobilizado muita gente a investir num pequeno empreendimento pra fazer poupança no fim de ano e tentar sobreviver os tempos duros que virão. Essas pessoas viram essa fonte de rendimento desaparecer sem nenhuma alternativa.
Por esses motivos –e não por negacionismo da pandemia, nem por estupidez, mas por necessidade – que havia uma multidão de trabalhadores junto aos comerciantes no centro de Manaus no dia 26 de dezembro bloqueando o trânsito, multidão essa que ficou o dia inteiro bloqueando o trânsito de outras vias e fazendo barricadas até que o governador recuasse.
Essa mobilização unificada entre trabalhadores informais, precários, comerciantes e empresários foi sintetizada no nome “Movimento Todos pelo Amazonas – MTA”. Como descreve Serafim Taveira no Jornal Conservador:
“Aquele decreto causou preocupações e uma repulsa imediata em vários seguimentos da população que dependem do amplo funcionamento das atividades econômicas, partindo do setor de transportes executados pelos profissionais conhecidos como motoristas de aplicativos e taxistas aos funcionários e empresários do comércio local que está enquadrado no rol de serviços não essenciais.
O desespero imediato foi tão grande que a articulação dos populares que buscavam o mesmo objetivo, a queda do decreto, ocorreu em uma velocidade superior a que foi vista até então e disto resultaram as ações que bloquearam no dia 26/12/2020 a rotatória da Feira do Produtor na zona leste de Manaus e a rotatória do Complexo Viário Gilberto Mestrinho que está localizado na interseção das zonas leste, sul e centro-sul. O movimento criou corpo, cara e definiu objetivos e agora se faz conhecer pela sigla MTA ou simplesmente, Movimento Todos pelo Amazonas”.
Algumas pessoas se destacam no movimento – elas não têm necessariamente um vínculo profundo prévio com agremiações partidárias. Victor Feitosa, motorista de aplicativos; Ivanilson Duarte, empresário do ramo da alimentação na zona leste; Silvio Maia, funcionário em uma empresa; Romão Júnior e Dowglas Soares, contadores.
Diante do novo lockdown, o Movimento Todos Pelo Amazonas (MTA) tentou organizar um novo protesto no dia 05 de janeiro com as seguintes pautas:
NÃO AO LOCKDOWN
QUEREMOS KIT COVID GRÁTIS (Ivermectina, Politivaminicos, Azitromicina, Predsin)
MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO PROS PROFISSIONAIS DE SAÚDE!
QUEREMOS UMA ESTABILIDADE ENTRE ECONOMIA E SAÚDE!
MAIS TRANSPARÊNCIA NOS PORTAIS DE COMPRAS DO ESTADO, DIVULGAR VALORES DE COMPRA E FORNECEDORES
O protesto não deu ninguém, mas as articulações continuam acontecendo. Não há indícios que esse movimento tenha realizado qualquer negociação relevante com o governo também – a negociação tem sido feito pelas entidades empresariais sobretudo. Tem sido sobretudo espaço de mobilização. O que quero enfatizar com essa explicação do fundamento e a forma do movimento é que não se trata de pessoas manipuladas e ignorantes, mas de algo que tem alguma organicidade entre trabalhadores urbanos e se considera legítimo.
Dilemas do lockdown
Quando o movimento fala de “estabilidade entre economia e saúde” está falando de uma realidade simples: não é possível ficar em casa e cuidar da saúde das pessoas sem condição pra isso. Por que foi necessário realizar protestos e fechar rodovias, fazer barricada, pra que o governador e o prefeito tomassem essas medidas básicas que ajudam as pessoas a ficarem minimamente tranquilas em casa? As pessoas precisam comer e precisam cuidar da saúde. Uma coisa não pode estar em oposição a outra. Um lockdown sem medidas de proteção social e econômica é uma farsa repressiva. As pessoas vão se revoltar contra uma situação dessas – e vai ser uma revolta legítima. Cabe à esquerda entender isso e pedir pelas medidas de proteção social para que haja de fato a proteção à saúde das pessoas pobres que dependem de suas atividades econômicas.
Por outro lado, o problema dos informais ainda persiste. A maioria das medidas econômicas anunciada é direcionada para os microempreendedores individuais e profissionais liberais registrados. Vendedores ambulantes ainda foram proibidos de fazer suas vendas sem uma fonte de renda alternativa. Uma saída possível e concreta está na proposta do prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, o “Bora Belém”, uma renda básica para aqueles que não conseguem gerar a renda necessária para sobreviver nesse momento que estamos vivendo. Se não for colocada em discussão propostas para acolherem os informais em suas vulnerabilidades específicas, irão inevitavelmente estourar outras revoltas dirigidas e apropriadas pela direita e pelos empresários interessados no fim de qualquer medida sanitária.
Cabe a nós dialogar com as pessoas, entender seus processos de vida e sobrevivência e ajuda-las a passar por isso juntas.