Uma Carta Sobre A Cultura do Cancelamento
O que é notável aqui é o que carta coloca como aceitável e o que coloca como inaceitável.
Um coro de luminários americanos excretou uma carta aberta na Harper’s Magazine argumentando contra “um novo padrão de atitudes morais e compromissos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas de debate aberto e nossa tolerância às diferenças e fortalecer a conformidade ideológica”. Os signatários da carta são numerosos — e, como eles fazem questão de apontar com um grau de fixação que beira o fetiche, diversos. De fato, a lista dos signatários vai desde professores de escolas estaduais até professores universitários da Ivy Legague, de escritores a autores a colunistas a críticos à teatrólogos, biógrafos e hosts de podcasts.
Em debate está o “clima intolerante em todos os lados” — ou seja, “a cultura do cancelamento” — que vem causando a “livre troca de informações e ideias, o sangue vital da sociedade, a ter sua circulação cada vez mais restrita”.
Tudo isso soa muito sério — restringir a circulação do sangue vital, oras! E a doença aparentemente já se apresenta. Quais os sintomas?
Editores são demitidos por abrirem espaço para artigos controversos; livros são retirados de circulação por supostas falsidades; jornalistas são barrados de escrever sobre cetos assuntos; professores são investigados por citar trabalhos literários em aula; um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico que passou por revisão de pares (peer review); e as direções de organizações são derrubadas por coisas que as vezes são apenas erros, falta de jeito na forma de fazer algumas coisas.
Já deve estar claro agora que essa carta é, de forma expressa e sem ambiguidade, uma declaração de solidariedade de classe da, pra e pela elite intelectual. Ela declara hastear a bandeira do liberalismo — e talvez seja liberal mesmo. Mas não é democrática. É o oposto. É uma declaração de princípios para, e um grito de guerra em defesa da, aristocracia intelectual. É nauseante.
Na imaginação moral da carta, não há espaço para você ou eu, seja como seres de agência ou atores políticos. Pessoas — intencionalmente colocadas em separado de “escritores, artistas, e jornalistas” — não tem papel a cumprir o exceto o de membros de rosto das “forças iliberais”. De fato, a carta retrata a democracia como nada mais que um presente, presente este entregue à humilde multidão através do brilho intelectual dos signatários: “A restrição do debate… torna a todos menos capazes de participação democrática”. Envergonhe-se aquele que pensa que pode votar sem primeiro ouvir o que Bari Weiss tem a dizer.
Nessa formulação de sociedade, o que importa é o que gera uma “cultura” que permite que deixa a “nós [escritores] espaço para experimentar, tomar riscos e as vezes até errar”. Um pouquinho de transfobia pra dar uma emocionada na semana, digamos. Uma carta mais afinada com a realidade material poderia observar que pra maioria das pessoas há pouco, quase nenhum, “espaço para experimentação, tomar riscos e as vezes até errar” na sociedade moderna. A maioria dos Americanos estão a uma batida de carro ou conta médica inesperada da falência. Pessoas negras, em particular, não precisam se envolver em nenhuma “experimentação, tomada de risco ou erros” pras suas vidas serem arruinadas ou tiradas. Qual foi o erro de Tamir Rice[1]? De Breonna Taylor?[2] Mas a abilidade de não-escritores de cometer erros sem serem triturados pela economia e pelo Estado não é “o sangue vital da sociedade liberal”. Pessoas não são o sangue vital da sociedade ideal da carta. Não, são os tweets de J.K. Rowling que são o sangue vital da sociedade. Não são vidas de verdade or sangue de verdade esse sangue vital.
Já posso ouvir os gritos de Entãosismo (n.t: no dito popular “mas e o PT? e o Lula”?). Mas se limitarmos a análise exclusivamente ao da atividade expressiva a carta não está redimida em grau nenhum. Mais uma vez, a agência moral de meros normais é ignorada de saída. A carta abre com um elogio na voz passiva de “poderosos protestos por justiça racial e social”. Na visão da carta, esses protestos poderiam muito bem ser um fenômeno natural. Manifestações “acontecem”. Desaparecidos estão os manifestantes. Desaparecidas estão as expressões de preocupação com as “graves [e decididamente não profissionais] consequências” da resposta violenta e reacionária aos protestos: os inúmeros manifestantes que levaram porrada, atropelamento, tiro, ataque químico e foram presos. Manifestantes não são, afinal, o“sangue vital de uma sociedade liberal”. Seguindo esse argumento, tentativas de atropelar manifestantes (e tentativas de legalizar o ato de atropelar manifestantes) não são uma ameaça ao sangue vital da sociedade. São os posts de Matt Yglesias que são o sangue vital da sociedade, e fazer piada com o quão ruins estes posts são que é a grande ameaça.
Quando chegamos à seção da carta que lista as graves consequências da cultura do cancelamento, mesmo à multidão é retirada a agência moral. Não, o verdadeiro alvo do ataque da carta são os discipliscentes “líderes institucionais” (que frase!) que, “no espírito de um controle de danos em pânico, estão executando punições rápidas e desproporcionais ao invés de reformas consideradas com profundidade”. Não são as pessoas que são o problema. O problema é o fracasso da elite bem pensante em posições de poder em ignorar — como deveria — os gritos da multidão.
É aí que chegamos no fundo podre no coração da carta: a passagem de exemplos citados em bloco acima. “Editores são demitidos por abrir espaço para opiniões controversas”. Vamos examinar, por um minuto, esta óbvia referência à demissão de James Bennet depois do New York Times publicar um artigo de opinião do Senador Tom Cotton chamando pela supressão da violência nas manifestações pelas forças armadas. Claro, o motivo pelo qual Benett realmente foi demitido foi um repetido padrão de fracassos editoriais, culminando na revelação que ele não havia nem lido o artigo de Cotton — novamente, um artigo por um senador dos Estados Unidos em exercício chamando o exército para reprimir protestos políticos internos — antes da publicação. Mas essa menção ainda não chega no central. O que é notável aqui é o que carta coloca como aceitável e o que coloca como inaceitável. Aceitável é a decisão de publicar um artigo de opinião (por um homem que uma vez bloqueou a confirmação de um comissionado de Obama para um cargo menor até ela morrer de câncer pra “infligir dor” ao presidente) chamando o exército para suprimir manifestantes. Inaceitável é a tentativa de associar consequências profissionais a essa defesa de opinião.
Ou seja: usar o exército para atacar você ou eu por exercitar nosso direito à Primeira Emenda está sujeito a um debate legítimo. Alguém poderia dizer que este artigo de opinião defende uma “cultura” que não “deixa espaço para experimentação, tomada de risco e mesmo erros”, mas essa opinião é uma que Tom Cotton e James Bennet podem dizer. Eles podem dizer que os membros das Forças Armadas dos Estados Unidos deveriam praticar crimes de guerra contra você se você participar dos tão apreciados “poderosos protestos”. Mas chamar o Times a demitir Bennet por falhar em fazer a parte mais básica e simples do trabalho dele é ir longe demais. Qual a diferença?Bem, a opinião de Bennet é a opinião do editor do New York Times, amigo, o irmão dele é um Senador, e você é só um zé ninguém.
De qualquer forma, tem um bilhão de outras coisas estúpidas com essa carta. Bari Weiss, signatária e Líder de Pensamento Neste Espaço por muito tempo, é famosa por ter tentado gerar “graves consequências profissionais” pra pessoas que dizem coisas das quais ela discorda. Ela nunca realmente respondeu por essa hipocrisia ululante — na verdade, ela nunca sequer foi questionada a respeito, apesar de ser entrevistada e aparecer em mesas constantemente. (Pelo menos Bret Stephens teve vergonha na cara o suficiente pra não associar seu nome à iniciativa). E caso você considere minha leitura da carta como fundamentalmente excludente como “pouco generosa”, um dos signatários (o venerável “host de podcast”) já falou que todas as críticas eram “recalque” de não terem sido chamados pra assinar.
No seu último parágrafo, a carta corajosamente apresenta: “Recusamos qualquer falsa escolha entre justiça e liberdade — uma não pode existir sem a outra”. Se a excreção dessa platitude é o melhor que as melhores mentes e maiores defensoras da sociedade liberal tem a oferecer, talvez estejamos em um problema maior que o imaginado. A afirmação não faz sentido. Claro que podemos ter liberdade sem justiça. Você pode ter liberdade para Bari Weiss e Olivia Nuzzi e Steven Pinker e para o Embaixador Frances D. Cook e para a J.K. Rowling, sem qualquer justiça para o resto de nós. Está longe de claro que os autores da carta teriam qualquer problema com isso.
Publico aqui a tradução que fiz da carta-resposta de Julius, estagiário do podcast All Lawyers Are Bastards. A carta que ele responde chama “A Letter on Justice and Open Debate” e é assinada por gente Noam Chomsky e vários outros intelectuais. N. do Tradutor
Por Julius, the Intern* — original aqui
Traduzido por Victor Hugo Viegas Silva
NOTAS DO TRADUTOR
[1] Em 22 de novembro de 2014, Tamir Rice, um menino afro-americano de 12 anos, foi morto em Cleveland, Ohio por Timothy Loehmann, um policial branco de 26 anos. Rice estava carregando uma arma de brinquedo réplica; Loehmann atirou nele quase imediatamente depois de chegar em cena. Retirado da wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Shooting_of_Tamir_Rice
[2] “A polícia de Louisville declarou que se anunciaram ao entrar na casa depois de bater várias vezes e dizer que eram policiais de Louisville com um mandado de busca. Os vizinhos e a família de Taylor contestam isso, dizendo que não houve anúncio e que Walker e Taylor acreditavam que alguém estava invadindo, fazendo com que Walker agisse em legítima defesa. Walker disse em seu interrogatório policial que Taylor gritou várias vezes: “Quem é?” depois de ouvir um estrondo alto na porta, mas não recebeu resposta, e que ele então se armou. Walker, um porta-armas licenciado, atirou primeiro, atingindo um policial na perna; em resposta, os policiais abriram fogo com mais de 20 tiros, atingindo objetos na sala de estar, sala de jantar, cozinha, corredor, banheiro e ambos os quartos. Taylor foi baleada pelo menos oito vezes e declarado morta no local”. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Shooting_of_Breonna_Taylor#Shooting
[2] “A polícia de Louisville declarou que se anunciaram ao entrar na casa depois de bater várias vezes e dizer que eram policiais de Louisville com um mandado de busca. Os vizinhos e a família de Taylor contestam isso, dizendo que não houve anúncio e que Walker e Taylor acreditavam que alguém estava invadindo, fazendo com que Walker agisse em legítima defesa. Walker disse em seu interrogatório policial que Taylor gritou várias vezes: “Quem é?” depois de ouvir um estrondo alto na porta, mas não recebeu resposta, e que ele então se armou. Walker, um porta-armas licenciado, atirou primeiro, atingindo um policial na perna; em resposta, os policiais abriram fogo com mais de 20 tiros, atingindo objetos na sala de estar, sala de jantar, cozinha, corredor, banheiro e ambos os quartos. Taylor foi baleada pelo menos oito vezes e declarado morta no local”. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Shooting_of_Breonna_Taylor#Shooting