Quem fez e faz a quarentena no Brasil? Os trabalhadores!
E a heroica resistência de Mandetta, o ainda Ministro da Saúde? Dos governadores? Dos militares razoáveis? Como foi isso?
E a heroica resistência de Mandetta, o ainda Ministro da Saúde? Dos governadores? Dos militares razoáveis? Como foi isso? Vamos ser sinceros a respeito dessa questão. Não houve, por parte do Estado, isto é, das instituições “democráticas”, nenhuma tentativa séria de quarentena real. Não houve fechamento forçado de estabelecimentos, multas pesadas para empresas que desobedecessem, nem lockdown de nada - na maior parte do país.
O que houve foi uma maior ou menor leniência ou reforço (pequeno) a uma quarentena organizada por conta própria pelos trabalhadores contra seus patrões e gestores. Se não aconteceu ainda o pior no Brasil, foi única e exclusivamente por luta dos trabalhadores. As aparições televisivas de Mandetta, os decretos dos governadores, as tentativas de quarentenas de prefeitos, todas essas tentativas só conseguiram algum efeito contra a sabotagem deliberada do Governo Federal quando conseguiram alguma sintonia com as lutas e o nível de consciência do perigo dos trabalhadores de cada localidade. Durou pouco.
No “dia do fico” do Mandetta, ele abriu mão do apoio à quarentena enquanto ministro em prol do “distanciamento coletivo” (imunidade de manada) e agora os governadores também estão todos abrindo mão de qualquer teatro de resistência em prol da rendição incondicional com nomes criativos como quarentena inteligente ou o mais comum “flexibilização de quarentena”. Não se enganem: nessa rendição não foram as vidas deles que entregaram, mas as dos trabalhadores dos seus estados. Foram as nossas vidas que foram para a roleta russa em prol da paz democrática dos cemitérios.
E isso foi porque mesmo as “boas” medidas de Mandetta e dos governadores foram muito pouco e muito tarde. O editor do The Lancet, principal revista médica do mundo, já alertava que eram necessárias medidas eficazes e discussão com a população desde janeiro deste ano. Note que esse comentário do editor do Lancet estava sendo feito contra Boris Johnson, Primeiro-Ministro inglês, mas se aplica perfeitamente a nós brasileiros trabalhadores.
Se não devemos a resistência que existiu até agora ao “herói” Mandetta, nem aos governadores, será à esquerda? Tampouco foi por ali. A estratégia do campo oposicionista “democrático” foi de deixar as coisas darem ruim para desgastar esse governo com olho em 2022, como documentado aqui. A avaliação era a seguinte: no início da pandemia, que todos sabiam ser mortal, e, para os pobres e vulneráveis desse país, especialmente mortal:
Impeachment ou ofensiva contra Planalto estão fora do horizonte de líderes políticos; avaliação é que presidente, isolado entre radicais, verá popularidade cair com coronavírus, crise na economia e novas dificuldades no Parlamento.
Das vítimas
Assim que começou o debate a respeito do que fazer na pandemia, alguns números surpreenderam muita gente que projeta sua ignorância na classe trabalhadora. Surpreendeu ainda mais os trabalhadores, baixos gestores e elites fracassadas “intelectuais” que atribuem animalidade e pouco cuidado com higiene aos trabalhadores “pobres”. Nas favelas, 96% dos moradores defendia o isolamento social horizontal contra o coronavírus. 76% dos informais e desempregados concordava com isolamento horizontal também. Entre os assalariados sem registro, a taxa era de 79%. Entre os que procuram emprego, a aprovação do isolamento horizontal era de 75%. A concordância com o isolamento horizontal era contraposta ao vertical, então implicava numa recusa da estratégia do isolamento vertical, da “imunidade de rebanho”. A única categoria em que não havia um apoio claro ao isolamento horizontal era entre os “empresários” (que na pesquisa vão de MEI a empresários mesmo): 49%.
Existia, então, um amplo movimento na base da sociedade para tentar se defender da pandemia de forma mais ou menos autônoma, como aconteceu em Paraisópolis (comunidade paulista). Foi o exemplo mais visível, mas houve vários outros: redes de vizinhos em prédios, movimentos de favelas, redes de solidariedade entre ocupações urbanas como as do MLB
(Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas) e até movimentos empresariais. Diante de uma ação fraca e contraditória do governo, predominou uma quarentena através da autodisciplina.
Foi esse movimento que impulsionou Mandetta para ter o dobro da popularidade de Bolsonaro, situação visivelmente percebida por ele ao manter coletivas-comícios televisionados diariamente para animar um movimento ativo, coordenado e integrado. Logo, porém, essa “frente ampla” foi se desfazendo.
A ponta empresarial da “revolução solidária” não hesitou em externalizar os custos da pandemia e demitir seus próprios colaboradores, enfraquecendo o primeiro elo. A esquerda cancelou não apenas os atos, mas qualquer ação política, colocando-se em quarentena e deixando os trabalhadores isolados em luta pela sua saúde.
Restou, entre os democráticos, Mandetta. O que ele fez? Num dia em que concentrava atenção positiva de 60% do twitter, que caminhava para ter a mesma popularidade que Sérgio Moro, Mandetta… desaba e cede. Troca a recomendação da quarentena pela utilização responsável de máscaras. Com isso, se encontra totalmente desarticulada a resistência.
Isso porque a maioria da população Brasileira confia em cientistas, coisa que estava personificada na figura do ministro. Além disso, também confiavam em suas empresas e a “cobertura” do Mandetta permitia esse movimento de autonomia proletária parecer obediência inofensiva às diretivas de um ministro. Tudo isso desabou quando o Ministro desmentiu a si mesmo e deixou na mão todos que precisavam dele para conseguir se proteger. Os patrões que estavam sendo “conscientes”, obedecendo a OMS, puderam agora convocar seus trabalhadores sem peso na consciência de estar provocando mortes e os trabalhadores não estavam organizados para conseguir resistir.
Não foi apenas a esquerda “pelega”, mas também a dita antiburocrática que ficou oscilando perigosamente, perto de afirmar que a pandemia era uma farsa ou que era apenas o capitalismo “normal” e, com esse “diagnóstico” em mãos, passou a fazer um ode aos trabalhadores coagidos a ir para a “correria” para sobreviver em corridas cada vez menos lucrativas e perigosas, serviços para “garantir” o emprego cada vez mais pautados na humilhação explícita ou no desespero básico pela necessidade de alimentação em busca de um auxílio emergencial. Em todos esses sinais de uma “revolta que se aproximava”, não viram que foi o fortíssimo movimento inicial de solidariedade dos trabalhadores que estava dando sinais de estar sendo derrotado pela coalização de pequenos patrões, pequenos gestores, colaboracionistas “democráticos” e Governo Federal assassino.
Esse movimento de base dos trabalhadores que, apesar de não ter nenhum apoio, muitas vezes ser atrapalhado, abandonado ou sabotado, inclusive pela esquerda política, chegou a realizar ações importantes como a paralisação nacional dos call centers. Essa ação demonstra sinais de continuidade, como a de arrancar conquistas no caso da terceirizada da Empresa Oi, a Atento, em Goiânia/GO. É apenas um exemplo entre vários que devem ter ocorrido. Essa movimentação social proletária foi tão forte que chegou a emparedar Bolsonaro em meados de abril e fez sua popularidade despencar quando demitiu Mandetta.
Mérito do covarde e traidor que abriu mão da política que sabia ser a única para combater a pandemia? De forma alguma. O poder que esse desconhecido conseguiu do nada vinha desse amplo e solidário movimento proletário de base, de autodisciplina no combate à pandemia.
Originalmente publicado no Passa Palavra.