Quando foi que eu virei uma pessoa que trabalha de graça?
Irmãos e irmãs freelancers, pejotas e criativos de todos os campos do cérebro, trago uma proposta: vamos parar de usar o termo “parceria” ou “colaboração” quando o termo correto for “exploração”?
Texto de Chico Felitti originalmente publicado no facebook, neste link.
Quando foi que uma geração de profissionais, cujo ofício entra na classificação genérica de “criativo”, passou a ter uma etiqueta com o valor zero colada no fruto do seu trabalho?
A primeira pergunta tem uma resposta: eu virei uma pessoa que trabalha de graça quando a @EdicoesGloboCondeNast Condé Nast, uma das maiores editoras do mundo, me convidou para escrever um conto para uma de suas revistas. Não iam pagar nada por ele, porque o tema era nobre. Mas eles não contaram que meu trabalho só serviria para uma propaganda de xampu.
Demorei mais de um ano para articular essas frases. E tudo o que está por trás delas. Em março do ano passado, recebi um e-mail de uma jornalista. Ela se apresentou e disse que estava trabalhando em uma edição “especial” da revista @glamourbrasil Glamour, que trataria de ”origens, heranças, brasilidade, culturas africana e indígena, diversidade, multiculturalismo, pluralidade, sustentabilidade, representatividade…”. As reticências no fim da frase, que sugerem uma infinidade de outras causas humanistas por trás da revista, são da própria editora. Ela vinha me convidar para escrever um conto curto com o tema raízes. O trabalho era voluntário, eu não receberia um centavo por ele.
“Gostaria de te convidar a participar!”, escreveu no e-mail a editora, chamada Marilia Kodic. E garantiu: “Tudo com uma edição bacana e cuidadosa.” A palavra “parceria” foi usada em algum momento para definir como seria nossa troca trabalhista. A lisonja de ter sido lembrado mais a proposta de uma revista que vai ao encontro dos valores que tento imprimir no meu trabalho me levaram a dizer sim.
Mas acabei assinando um contrato imaginário cujas cláusulas não haviam sido expostas. No dia 11 de abril de 2019, quando a edição digital da Glamour foi publicada, ela era honesta quanto a do que se tratava: “Em parceria com Head & Shoulders, tivemos a beleza como o ponto de partida de uma série de matérias que serão publicadas entre 11 e 14.04 no site e redes sociais da Glamour.”
De novo, o termo “parceria” é usado. Mas imagino que a Condé Nast não tenha aceitado um pedido de parceria da @pgbrasil P&G, uma empresa que teve US$ 3,7 bilhões de lucro em 2019, e que é dona da marca @hsbrasil Head&Shoulders (e de tantas outras que vão da dispensa ao banheiro, passando por nossos bolsos, como Pampers, sabão Ariel, pastilhas Vick Vaporub, Gilette e Oral B).
O editorial da revista era assinado pelo Estúdio de Criação Edições Globo Condé Nast, braço do grupo que faz conteúdo pago. Os tais publieditoriais, peças publicitárias encomendadas por uma empresa, fantasiadas de reportagens e de editoriais.
No pé da página da internet onde foram publicados os contos sobre raízes, estava a comprovação da minha suspeita: um aviso, em letras maiúsculas amarelas, de que os contos feitos de graça eram um ESPECIAL PUBLICITÁRIO. Ou seja, a Condé Nast recebeu dinheiro de uma empresa para fazer propaganda, e cooptou mão de obra gratuita encapando esse comercial como uma edição nobre que falaria sobre “origens, heranças, brasilidade, culturas africana e indígena, diversidade, multiculturalismo, pluralidade, sustentabilidade, representatividade”, para repetir o e-mail da editora. E eu caí.
Mas pelo menos caí sem ninguém ver. O meu conto não figura nos cinco publicados pela Glamour. Talvez porque a revista tenha optado por só publicar autoras mulheres, ou talvez porque o meu conto fosse à raiz do problema, mesmo que inconscientemente. O conto que eu mandei (ou devo dizer “doei”?) para a revista Glamour era sobre uma protagonista de novelas que, com o escalpo maltratado por anos de tintura, resolver assumir a carequice --mas só porque uma firma de xampus para carecas decide patrocinar sua coragem. De qualquer maneira, meu conto não foi publicado. Mas o trabalho existiu tanto quanto se ele tivesse saído --e a editora nunca me escreveu justificando o motivo do não uso, então fico no campo da especulação.
Naquele momento, achei bom que meu texto não tivesse sido publicado. O que senti quando vi a publicação sem meu nome foi alívio. Foi um alívio ter trabalhado de graça, sem no entanto ter sido exposto como alguém que trabalha de graça. Eu havia caído em uma arapuca da cultura colaborativa, uma armadilha da qual achei que já fosse safo o suficiente para escapar.
Esse caso de engodo da cultura colaborativa está longe de ser único, ou original, no mundo corporativo. É a linha de chegada de um corrida ao revés, para desvalorizar o trabalho criativo, e que já dura anos. Se quando escolhemos carreiras tidas como “criativas” já sabíamos que as chances de ganhar dinheiro eram poucas, essa situação se agravou muito de 2010 para cá. A perversidade vai além em casos como esse. Não é que seu trabalho valha pouco. Ele não vale nada.
E eu não estou só nessa. Somos um mar de jornalistas, escritores, fotógrafos, designers, cozinheiros, atrizes e comediantes para empresas pescarem com suas iscas, palavras como “colaboração” e “parceria”, e a promessa de trabalhos em prol de causas como igualdade de direitos.
Uma amiga fotógrafa foi convidada a “colaborar” com um projeto de fotos inclusivas de pessoas LGBTQIA+ e não brancas. As fotos do tal projeto acabaram virando campanha de um shopping center, e ninguém foi pago por isso --fotógrafas nem modelos.
Um amigo ilustrador foi convidado a “colaborar” com uma marca de moda que tem dez lojas no Brasil, na comemoração do Dia do Orgulho LGBTQIA+. Em troca do seu trabalho, ganharia uma peça de cada roupa em que seu trabalho fosse impresso. Ou seja, ganharia o produto que ele mesmo concebeu. É como se eu escrevesse um texto para uma revista e eles me pagassem com uma versão impressa das minhas próprias palavras
No meu caso, me senti manipulado. Tropecei na ilusão de que estaria trabalhando para um bem maior: construção de memória e ideal de igualdade, no caso dos textos sobre raízes, que na verdade era só uma propaganda de shampoo anticaspa.
Mas, como meu texto não foi publicado, achei que não fosse o caso de trazer o assunto à tona, e soar como um mau perdedor. Até que eu me dei conta de que não estava perdendo nada. Havia sido “convidado” a trabalhar de graça para um anúncio, no qual felizmente acabei não aparecendo. Minha vergonha de ter sido engambelado por termos enganosos era só minha. Mas, um ano e pouco depois, ainda me pego desprevenido pensando nesse caso, e meu coração se acelera. Meu coração está acelerado agora,no ritmo em que castigo as teclas do computador.
Demorei meses para diagnosticar com clareza a gravidade da situação. O acinte da exploração fantasiada de convite. Meses depois de a revista sair, encontrei com uma das autoras cujo texto foi de fato publicado, e ela abriu os olhos e a boca quando perguntei se ela sabia que seu conto tinha sido usado em uma propaganda maquiada. Ela afirmou que não sabia --e que tampouco tinha sido paga para escrever;
A precarização dos vínculos de trabalho e a centralidade que ganharam as redes sociais criaram uma quimera entre nós, operadores do simbólico, nos últimos anos. A ilusão de criação de uma marca pessoal: o profissional criativo passou a ser seu próprio produto, responsável pelo marketing do seu peixe --no caso, de si mesmo, o que faz de nós algo parecido com sereias, meio peixes, meio gente. Viramos empresas de capital aberto de nós mesmos, produzindo ações que um dia vão se valorizar, se tudo der certo.
Mas essa lógica é falaciosa, porque essas ações nunca vão render dinheiro, já que os compradores dificilmente estarão dispostos a pagar por uma coisa que podem ter de graça. Nosso trabalho acaba virando títulos podres, no jargão do mercado financeiro para ações que não valem nada.
Essa ilusão colaborativa erigiu uma cultura de parceria. Como bonequinhos cirandeiros recortados em uma folha de papel, todos nos damos a mão. Vamos colaborar em nome de algo maior: igualdade de direitos para todos, erradicação de preconceitos e atenuação da desigualdade social. O discurso de clanismo hippie é atraente, mas esconde uma pergunta: em nome de que estamos colaborando, no final?
No meu caso, a resposta era: em nome de vender shampoo para jovens que se importam com valores como igualdade e diversidade. Em nome de vender jaquetas de R$ 670, no caso do ilustrador. No caso da amiga fotógrafa, em nome de vender a imagem de liberalidade e aceitação para um shopping, que por sua vez lucra vendendo roupas, utensílios de cozinha, pipoca de R$ 42 no cinema.
Você não pede para um advogado colaborar com seu processo de divórcio. Ou para uma médica colaborar com a retirada de um tumor de próstata. Então por que vem pedir como colaboração a única coisa que posso vender como trabalho?
Irmãos e irmãs freelancers, pejotas e criativos de todos os campos do cérebro, trago uma proposta: vamos parar de usar o termo “parceria” ou “colaboração” quando o termo correto for “exploração”?