Patrão fura quarentena matou e vai continuar matando
Miguel Otávio Santana morreu porque uma patroa não deixou a empregada ficar em quarentena
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma cousa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: “Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”. Machado de Assis, O Enfermeiro.
Patrões irresponsáveis assassinam Miguel Otávio, filho de Mirtes, pra garantir que a empregada furasse quarentena e eles pudessem ficar à toa em casa.
Miguel Otávio Santana, menino de apenas 5 anos, filho de Mirtes Renata, foi negligenciado por uma patroa que deixou ele cair do nono andar e morrer. Ocorre dessa patroa ser esposa do prefeito da cidade. Ocorre dessa patroa estar obrigando a doméstica a trabalhar durante uma pandemia.
Como a imprensa tratou o caso? Na história contada sobre os crimes cometidos pelo estado e pelos patrões contra as pessoas, as mulheres, os homens, os idosos, as crianças pobres, nem tão relevantes assim, entendemos a chave para o massacre cotidiano que acontece no Brasil. Eles estão perdoados desde o começo por quem conta a história.
É assim que, por exemplo, é possível falar com naturalidade que no Brasil ser negro triplica sua chance de ser morto e que a nossa polícia assassina dezessete vezes mais pessoas negras que nos EUA sem causar rebeliões proporcionais.
Existe um mecanismo funcionando. Vamos expô-lo aproveitando esse caso da patroa.
Empregadora da mãe do menino que caiu do 9º andar no Recife é autuada por homicídio culposo.
São cinco manchetes sobre o mesmo fato. Algumas citam a patroa ou empregadora, outras nem isso. Mas todas tem em comum: o menino que morreu ao cair do prédio - parece que ele caiu sozinho. Na manchete, a mãe da criança não tem nome. A criança não tem nome. Não são humanizados. O nome da patroa é preservado. Por que a criança que caiu do prédio estava lá?
Essa pergunta é central. Miguel Otávio estava lá porque estamos vivendo uma pandemia de COVID-19. Se tinha acesso a creche, ela está fechada por questão de quarentena - porque todos os serviços não essenciais estão fechados para evitar aglomerações. Por que ela estava lá, então? Doméstica por acaso é essencial?
1) Porque o estado de Pernambuco não falou de forma absolutamente clara que o serviço de empregada doméstica não é serviço essencial e ela poderia ter o ponto cortado e ser punida por não comparecer ao trabalho. No decreto que deu abertura para que ela fosse obrigada a trabalhar, não houve previsão de proteção adequada para sua família ou condições adequadas de trabalho e prevenção.
2) Mesmo assim, “o MPT também se posiciona contrário às demissões que possam ser justificadas por ausência da doméstica que tenha sido motivada pelas demandas de cuidados familiares”. Quer dizer que Miguel Otávio estava lá com sua mãe porque a esquerda, também, não existiu para fazer valer - dentro da ambiguidade - o lado da trabalhadora. Ela teve que lutar sozinha e acabou tendo que optar por tentar garantir a segurança do filho junto de si no trabalho.
3) Finalmente, porque os patrões desgraçados exigiram que Mirtes estivesse lá - sabendo que ela precisaria levar o filho. Uma vez que exigiram, deveriam no minímo ter garantido um espaço seguro para que ela trabalhasse com sua segurança e a do filho garantidas. Não o fizeram porque não quiseram, porque acharam que não valia o gasto. Nem a patroa desgraçada nem o prefeitinho iam morrer ou ficar sem nada de essencial por falta do serviço. Insistiram na presença da empregada no espaço por terrorismo econômico.
Vamos falar o que aconteceu, então? Qual a manchete:
Patrões irresponsáveis assassinam Miguel Otávio, filho de Mirtes, pra garantir que a empregada furasse quarentena e eles pudessem ficar à toa em casa.
É isso que aconteceu. É assim que deve ser tratado. O dono da churrascaria Fogo no Chão quando demite e manda a conta pro governo também está fazendo isso: ameaçando de morte trabalhadores para furar a quarentena. É o que os varejistas fazem quando ameaçam a vida de 600 mil pessoas ao ameaçar demitir caso não reabram, mesmo havendo um programa do governo para garantir empregos e empresas. De acordo Roberto Campos Net, presidente do Banco Central: "O fato de não poder demitir ninguém fez com que muitas empresas achassem o programa muito restritivo e decidiram não entrar". Ao não contarem a história de porque Miguel Otávio não deveria estar lá, muitas vozes acabam compactuando com a política de extermínio em curso no Brasil travestida de ‘quarentena flexível’.
O patrão que ameaça o empregado pra ele furar a quarentena está ameaçando a sua vida, a vida dos seus filhos, a vida dos seus parentes. As nossas vidas. Eles tem que começar a ser responsabilizados por isso. Ou podem acabar como o enfermeiro do conto do Machado de Assis: enricados e bem falados por se sentirem mal pelo crime que cometeram sabendo muito bem o que estavam fazendo. É assim que acham vão continuar matando trabalhadores e também negros na pandemia impunemente, é assim que justificam a morte do “acusado na troca de tiros” em apenas um de milhares casos policiais, mas o pacto genocida está esfacelando e não aceitaremos mais a morte de ninguém.
São assassinos. Que comecem a pagar por isso. Que sejam impedidos de assassinar. Que comecem eles a sentir o sufoco e dizer: