O Auxílio Emergencial não acabou em janeiro. Foi acabando aos poucos - e sem chance de defesa.
"É evidente uma uma intenção deliberada de diminuir o número de pessoas ao longo do tempo”
Você deve ter visto a notícia que o governo liberou o pagamento do Auxílio Emergencial pra 196 mil pessoas que tinham entrado com contestação. Boa notícia, né? Bem, depende de como você olha pra informação.
Esses 196 mil, todos os que contestaram o bloqueio são 0,5% das pessoas bloqueadas e canceladas desde agosto do ano passado. Só estas tiveram chance de contestar o benefício e estão recebendo esse beneficio agora.
E quanto foram essas pessoas? Se você olhar no site da transparência e procurar as tabelas de beneficiários do auxílio, só vai achar dados até agosto. Mas um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) que o autor fez para o Ministério da Cidadania resolveu o problema e conseguimos os dados dos cortes. O que eles mostram?
A maior parte dos cortes aconteceu em 2020, sendo uma parte pequena em janeiro. De acordo com Lauro Gonzáles, professor da Fundação Getúlio Vargas, pode-se falar de uma estratégia deliberada de exclusão de beneficiários. “Preponderava no governo a visão que o valor fixado acabou sendo mais alto que o Bolsonaro queria. Tem uma série de pessoas que não iria receber todas as parcelas desde o começo e quando se estenderam as parcelas em Agosto já”. Ele acredita que “o endurecimento dos critérios certamente partiu do princípio que haveria necessidade de gastar menos”. Como isso se expressa em números?
Foram mais de 50 milhões de beneficiários cortados ao longo dos meses finais de 2020
“Esses números não me assustam”, diz Paola Carvalho, assistente social e membro da Rede Brasileira pela Renda Básica, “porque o governo implementou o auxílio como sempre se posicionou. Ele sempre foi contra. Depois queria que fosse até no máximo 30 milhões. Quando foi implantada, a política foi muito maior do que ele gostaria. Quando ele cede e cria, foi criando as condições para que fosse reduzindo. Mas se o programa fosse bem implementado, com seus direitos garantidos, a pessoa fosse protegida até o final do programa para que no final se encontrasse uma outra alternativa pra ela. Acontece que o governo era contra e a pressão popular de um desligamento de 70 milhões de uma vez em janeiro seria muito maior do que o dos 13 milhões que aconteceu ao longo dos anos”.
Noemi Xavier , 35, cozinheira, conta que “quando engravidei da minha filha eu fui mandada embora do meu serviço, não recebi nada, né”? Quando o auxílio acabou em novembro, ela foi despejada onde morava - ela pagava aluguel com o auxílio. “Só não fui pra rua porque pessoas de bom coração se juntaram e me ajudaram”. Ela conta que não está conseguindo trabalho, o marido só consegue bico, “então pra mim tá sendo muito difícil essa falta agora com esse negócio de economia, todos os parques fechando e estou ficando com depressão e tudo porque sempre as crianças chorando porque não nem o leite e uma bolacha”.
Já Mariana Avelino, de 42 anos, desempregada, que mora em Niterói (RJ) acha “que foi uma política muito bem articulada do governo pra cortar os benefícios”. “Realmente é uma discussão política – como justificar politicamente o fim de um programa que não deveria estar acabando. Existe uma orientação do programa para que não seja criado corpo desmobilização”, diz Paola Carvalho.
Diz Mariana: “Eu recebia 1200, as duas cotas 600 de cada no bolsa família - assim era a regra”. Como ela soube que foi cortada? “Quando cheguei à Caixa (Ecônomica) dia 26 de agosto de 2020 como de costume e fui sacar o dinheiro saiu o extrato dizendo benefício cancelado pelo ministério”. Quem era o responsável? “A caixa dizia que era no Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e o Cras que era com o ministério da cidadania e assim um jogo de empurra”. Ela seguiu o passo a passo de uma advogada que auxiliava beneficiários no facebook e entrou com recurso com a Defensoria Pública da União na Justiça Federal em 23 de outubro de 2020. Até hoje ela espera. Noemi Xavier entrou com o processo em 25/11/2020, quando deixou de receber. Até hoje ela espera.
“Não consegui recorrer, porque quando entro no site do Dataprev não tem a opção de ‘contestação’” me contou Wallyson Novaes, 26 anos. É a história de mais de dez beneficiários entrevistados pelo repórter na época em que as contestações ficaram abertas pelo sistema do Ministério da Cidadania. Lauro Gonzáles, da FGV, conta que de qualquer forma “existe um custo de transação pras pessoas recorrerem da decisão e a própria demora e a própria dificuldade na contestação pode uma maneira de inibir o número de pessoas que iria contestar”. Ele acredita que “pode ter tido uma combinação de certa dificuldade em contestar, com até mesmo as condições e elegibilidade – isto é, a pessoa não atendia mais os critérios. Mas é evidente uma uma intenção deliberada de diminuir o número de pessoas ao longo do tempo”.
Futuros impossíveis
Mariana Avelino conta de um futuro, de valores que foram cortados junto com os beneficiários ao longo de 2020 e início de 2021: “O que a população brasileira está passando no momento é uma humilhação e eu digo a todos, não tenham vergonha de mostrarem seus rostos e dizerem, estou com problema, estou com contas a pagar, não tenho dinheiro, não tenho comida, isso não é vergonha, tá? Venham, abracem a causa, juntos venceremos. Com certeza venceremos”.