“Esta pandemia tem exacerbado problemas estruturais do estado” (1)
Gabriella Lotta responde algumas perguntas sobre a estigmatização da linha de frente da covid-19. Por Victor Hugo Viegas Silva*
Gabriela Lotta. Professora e pesquisadora de Administração Pública e Governo da FGV EAESP. Coordena o Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) e tem se dedicado ao tema dos profissionais do serviço público que estão na linha de frente na pandemia de Covid-19. Ela teve a gentileza de responder algumas perguntas minhas sobre os motivos da estigmatização, a pesquisa que ela está realizando sobre assédio moral e os processos pelos quais esses trabalhadores vem passando.
Você acha que a pessoa que trabalha com pessoas de covid-19 hoje é alvo de discriminação? Isso tem impacto no trabalho e nas taxas de mortalidade?
Sim, nas nossas pesquisas com profissionais da saúde estamos recebendo vários relatos de profissionais que estão sendo hostilizados nas ruas e nos seus trabalhos por causa do medo da população ser infectada por eles. Isso certamente tem impacto nestes profissionais, tanto na sua proteção física como em sua saúde mental. Eles já estão trabalhando em condições muito difíceis, com medo, com excesso de trabalho, com todo stress que é estar na linha de frente nesta pandemia. Ao serem hostilizados nas ruas ou em seus locais de trabalho, isso torna a sobrecarga ainda mais difícil e pesada de lidar. Imagina sair de um dia exaustivo de trabalho, cheio de medo, de tristeza pela pandemia, e ainda ser agredido e hostilizado? E isso é mais grave ainda com aqueles profissionais que residem no mesmo território onde trabalham, como é o caso dos agentes comunitários de saúde. Vários deles têm nos reportado situações de hostilidade em sua vizinhança. Não podem mais sair de casa, não podem mais ir no mercado, não podem mais ficar no quintal porque se sentem hostilizados. Esta situação está fazendo a atuação destes profissionais (de quem dependemos) ainda mais difíceis e sofridas. E rompendo vínculos e laços de confiança que são centrais nas políticas de saúde.
O mesmo médico falava que não tinha vínculo trabalhista certo com o Hospital de Campanha, esse vínculo aparecia publicamente no máximo através do adesivo no carro do direito ao estacionamento. Por isso a medida de estacionar longe. Existe relação entre o vínculo precário de trabalho e essa espécie de auto-invisibilização?
Esta pandemia tem exacerbado problemas estruturais do estado. E as relações de trabalho são uma delas. Há alguns anos temos uma precarização das relações de trabalho no serviço público em geral e no SUS de forma específica. Durante a pandemia, estas relações têm gerado várias consequências, como assédio moral e obrigatoriedade de trabalhar mesmo em condições adversas ou sendo grupo de risco. Também recebemos relatos desta situação de profissionais do país inteiro. Por exemplo: profissionais obrigadas a continuar trabalhando grávidas; ou a trabalhar sem EPI e sem poder reclamar sob ameaça de demissão. Este cenário reforça a ideia de que estes profissionais precisam trabalhar quietos, trabalhar muito, não reclamar, não expor problemas. E só reforça o descaso generalizado do estado com os profissionais da linha de frente.
Recebi relatos de pessoas que foram obrigadas a realizar exames porque "alguém espalhava um boato que a viu tossindo", mesmo não cumprindo os critérios de realização do exame via covid. Apesar dos colegas espalharem o boato e nas palavras dos entrevistados "nos assediarem", quem solicitava o exame mandatório era a chefia. Essa prática do exame mandatório configura forma de discriminação? Tende a afetar mais os profissionais da linha de frente?
Este é mais um relato do aumento dos casos de assédio moral durante a pandemia. Nas pesquisas que estamos finalizando agora, já vimos que quase 1/3 dos profissionais alegaram estar sofrendo assédio moral durante a pandemia. Este caso relatado é um dos exemplos. Ele mostra várias coisas. A primeira é o sentimento coletivo de desespero destas pessoas. Qualquer sinal de possível contágio já ganha proporções enormes que mostra o desespero da situação que estão vivendo. E se estiverem sem os equipamentos e recursos adequados, este desespero aumenta ainda mais. Por isso não dá para culpabilizar os profissionais sozinhos por atitudes como esta. Ontem por exemplo saiu um relato de uma médica dizendo que a UBS onde trabalha não tem janelas. Imagina como deve ser angustiante trabalhar num lugar destes num momento de pandemia. Como a linha de frente é quem está vivendo na pele estas situações precárias, sem apoio, recurso e equipamento, os casos em que o desespero aflora acontecem ali. Neste sentido, a linha de frente é de fato a mais afetada neste momento, porque para eles não existe opção de home office. E o que temos visto é este descaso do poder público em prepara-los para trabalharem bem e seguros neste momento.
97% das fatalidades de pessoal de saúde no Reino Unido foram BAME (Negro, Asiático ou outrasm minorias). A Byline Times relatava como as pequenas discriminações do dia a dia contribuíram pra isso aqui. É possível uma incidência de mortalidade análoga no Brasil em relação a raça e gênero? Temos instrumentos pra conseguir captar isso?
Saiu hoje uma pesquisa mostrando que a mortalidade no país é mais negra, masculina e jovem do que nos demais países. É só mais um retrato das nossas desigualdades acentuadas em tempos de pandemia. Vários trabalhos no Brasil têm mostrado como as desigualdades podem ser acentuadas ou produzidas pela linha de frente (ver o livro Implementando Desigualdades organizado pelo Roberto Pires). Mas isso não é porque estes profissionais são pessoas más ou perversas. Tem vários fatores que levam a isso. Primeiro, a sobrecarga de trabalho, a falta de recursos e a falta de suporte fazem com que estes profissionais tenham que fazer "escolhas trágicas" na ponta, como decidir quem recebe o pouco recurso disponível. E estas escolhas são feitas com base em vários critérios. O que as pesquisas mostram, é que, muitas vezes, os profissionais escolhem investir o recurso escasso em quem tem mais chances de dar certo (ex: dar medicamente para quem tem mais chance de tomar corretamente e se curar). O problema é que em geral "quem tem mais chances" são os menos vulneráveis. E isso gera um ciclo vicioso de vulnerabilidades.
A segunda questão é que os profissionais da linha de frente são parte da sociedade. E carregam com eles estereótipos, estigmas e visões de mundo que a sociedade também tem. Se nós vivemos em uma sociedade extremamente racista, não dá para esperar que os profissionais da linha de frente não sejam racistas. Nós temos, enquanto estado, é que não deixar que eles sejam racistas. Mas se o Estado não faz nada, isso não vai mudar naturalmente. Assim, os profissionais da linha de frente, como cidadãos que fazem parte de uma sociedade, incorporaram práticas que reproduzem desigualdades quando atuam na ponta.
E tudo isso é piorado em tempos de pandemia, onde recursos são mais escassos, o trabalho tem demanda ainda maior, os profissionais se sentem com medo, em risco e desprotegidos e sob forte stress. É um ambiente muito propício para que práticas estigmatizantes e excludentes aconteçam.
Em Çamaçari, uma trabalhadora relata que pacientes evitavam relatar sintomas gripais para evitar ficar na "ala do covid-19" do hospital. Entrando lá, relatavam uns para os outros que na verdade tinham esses sintomas mas ficaram com vergonha de falar na porta. O que explica essa "vergonha"?
A vergonha de ter covid-19 está relacionada a várias questões. Uma delas é a própria imagem ruim que a doença adquiriu no Brasil por causa dos conflitos políticos (em grande medida fomentados pelo presidente). Ao chamar a doença de gripezinha, ele propaga o sentimento de que quem ficar doente e se sentir mal está exagerando, não é viril, não é macho o suficiente. Ou seja, criou-se um estigma social de que a doença não pode ser vivida de forma sofrida. Ter que ir para o hospital por causa dela é, então, um absurdo. Além desse problema, como é uma doença de contágio fácil, a própria sociedade tem medo e tenta ficar longe de quem pode ter a doença, o que gera um estigma no doente também (parecido com a questão que falamos sobre os médicos terem medo de dizerem que são médicos).
Ou seja, as pessoas têm medo de admitir que estão doentes pelo fardo social que isso virou justamente pela maneira como o país tem lidado com a doença.
*Jornalista freelancer. Contato para pautas: badernaemiseria@gmail.com