CACIQUES E ÍNDIOS, ÍNDIOS CACIQUES, CACIQUES…
O TRABALHO DE BASE EM 2013 EM GOIÂNIA
Janeiro de 2018
No conjunto da esquerda muito se fala de “trabalho de base”. É um termo nebuloso, que confunde coisas muito diferentes. Essas coisas normalmente se inspiram em coisas que variam desde o trabalho de organização de células partidárias hierarquizadas até um trabalho de “conscientização” inspirado nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica — que combinavam organização horizontal com a religiosidade popular.
Em Goiânia, por algum motivo, trabalho de base virou “panfletagem em feira e terminal de ônibus” dentro de uma acepção genérica de “diálogo com a população”. No máximo uma panfletagem em escola. Esse é um modelo que parece de alguma forma torta também inspirado em 2013. Mas o que se esquece nos debates é que esse tipo de ação era uma parte mínima ou uma consequência de um trabalho anterior.
Pensando nisso cheguei à conclusão que talvez tivéssemos criado uma modalidade específica de “trabalho de base” que nunca chegamos a formular. Porque misturava influências diversas e se combinava com trabalhos anteriores de organizações muito diferentes.
Pensei que poderia ser uma boa falar um pouco por alto desse tipo de trabalho pra dar ideias pra essa turma nova que vai lutar contra o aumento agora.
AGITAÇÃO — ORGANIZAÇÃO
Um grupo (que hoje vejo ser muito restrito) via toda agitação como oportunidade de criar organização. Nas panfletagens em portas de escola, por exemplo, para divulgar uma manifestação, tentávamos conseguir contatos (telefone e e-mail, na lata mesmo) dos estudantes que conversavam um pouco mais pra ver se eles topavam puxar um bonde pra manifestação. Depois iria alguém ajudar essa pessoa a montar o bonde e convidar todo mundo a curtir a página da frente de luta e participar das reuniões abertas. Isso abriria portas para realizar atividades de debate sobre transporte, por exemplo. As vezes isso era feito no processo mesmo: panfletagem de manhã cedo, roda de conversa tentando articular um grupo na hora da saída da escola. Em algumas escolas onde havia trabalho mais consolidado chegamos a realizar reuniões “gerais” (isto é, do conjunto dos militantes da luta contra o aumento) naquela localidade para tentar vincular mais pessoas daquela escola à organização.
Alguém chegava na página porque queria panfletar no seu terminal. Entrávamos em contato com a pessoa passando o panfleto, trocando ideia, tentando a chamar pra reunião aberta. Se não desse, ia alguém atrás dessa pessoa pra tentar ver o que rolava de fazer na região ou na escola dela.
Nas manifestações, as assembleias de início e final de ato eram oportunidades excelentes pra tentar vincular as pessoas à luta. Tentávamos tirar (decidir naquele espaço) ações simples e fáceis de serem realizadas como colar cartazes na cidade, trazer mais cinco pessoas, fazer uma roda de conversa na tua escola e a data da próxima manifestação, por exemplo, porque participando da decisão da data da manifestação a pessoa se sentia mais comprometida com a mobilização para o próximo ato.
Dessa forma a “massa desorganizada” convocada de forma fragmentada ia ganhando um corpo social.
Houve uma manifestação que fizemos, na hora, um abaixo assinado contra o aumento da passagem pra tentar conseguir o apoio da população e vinculá-la ao protesto que estava acontecendo próximo. Antes de um protesto em um terminal, por exemplo, algumas pessoas passaram lá conversando e perguntando quais eram as linhas mais problemáticas, que soluções eles teriam pros problemas locais, pra saber o que falar na hora de chegar no lugar em forma de manifestação.
Isso porque a manifestação não era um fim em si mesmo — para alguns de nós o protesto era pra ser um momento dentro um processo mais profundo de organização popular contra as empresas e contra o Estado.
Vejam, então, o seguinte: todas essas ações meio agitativas, meio organizativas, pressupunham um contato com continuidade, tarefas e decisões a serem compartilhadas com as pessoas que ainda não estavam junto com a gente, objetivos claros que vão ser objeto de debate e polêmica pra todos com quem conversamos. Todas essas ações requerem uma disciplina mínima, uma abertura pra construção coletiva e uma consciência dos objetivos e métodos da luta.
A reunião do conjunto dos militantes e as manifestações que fazem algum sentido e mostram força real de transformação eram resultado disso. É esse tipo de prática de envolvimento das pessoas que fazia com que nos diferenciássemos dos burocratas e não o fato de nos declararmos muito puros diante dos impuros que escolheram se filiar em alguma organização.
Por isso, está do lado de cá quem quer construir a massificação cada mais democrática do movimento em profundidade, independente da ideologia que proclame. Do lado de lá estão os que querem se afirmar como uma elite conhecedora da verdade além da população passiva, seja lá o nome que se chame: empresário, comunista, “autônomo”, não importa.
É ISTO UM MILITANTE PÓS 2013?
Dezembro de 2017
Vamos variar um pouco e falar de militância social e um pouco de 2013.
Esse texto vem alimentado por uma urgência de repensar nossas lutas e práticas. Se quisermos ter algum sucesso nas lutas do futuro e não acreditamos na via tradicional, precisamos repensar profundamente os valores que vem alimentando a nossa prática política. E encarar alguns fardos históricos que vem nos atrasando para podermos construir uma alternativa concreta e revolucionária diante dos impasses difíceis que teremos esse ano e no futuro. Entre eles está essa mistificação do militante ‘independente’ ou ‘autônomo’. Ele é, em parte, uma autocrítica também. Esse é o primeiro de uma pequena série que pretendo escrever.
A ideia hegemônica de militância até mais ou menos 2013 em Goiânia era aquela feita através de partidos, entidades, movimentos sociais “massivos”, coletivos, enfim, estruturas coletivas mais ou menos formalizadas e hierárquicas, que requerem o cumprimento de tarefas com alguma regularidade, reuniões, algum acordo ideológico minimo. Se você quisesse ter alguma relevância, precisa passar por essas instâncias. A experiência de ser um “independente” nas lutas sociais era uma das mais frustrantes, geralmente levando a pessoa a desistir da militância ou se filiar a alguma estrutura mais “sólida”.
Isso foi implodido em 2013 , a meu ver, pela experiência da Frente Contra o Aumento. Pessoas vindas do nada, cujo único acordo era com a pauta da luta contra o aumento e com o método organizativo, puderam assumir o papel anteriormente reservado ás direções testadas pelo tempo nos movimentos e organizações tradicionais: formular, organizar e preparar as manifestações, negociar com as autoridades, debater políticas. Isso aconteceu porque pela primeira vez os chamados “independentes” eram maioria e conseguiam determinar o rumo político da luta mesmo sem uma organização prévia — e conseguiam fazer isso em meio aos embates entre diversas organizações que também compunham a luta e aceitavam construir a luta dessa forma, mais democrática, de igual pra igual. Ao mesmo tempo, se esperava que todo mundo cumprisse as tarefas básicas das manifestações: panfletar, carregar coisas, correr atrás de carro de som etc. Isso não aconteceu sem ambiguidades, contradições e tudo o mais, mas ficou algo de um modelo para as lutas posteriores na cidade. O facebook também fornecia uma ferramenta de interação direta com o público pra além das panfletagens nas escolas, salas de aula e conversas nos terminais de ônibus. Mas era apenas um complemento.
Havia um forte aspecto pedagógico em todo esse processo. O militante “ideal” da frente, que frequentava todas as reuniões, ia se tornando alguém com noções básicas que são ensinadas nessas “escolas de quadros”: análise da conjuntura e das relações de força a partir das notícias do dia, diferenciando estratégia e tática, falar publicamente e articular bastidores, capaz de articular ações com objetivos imediatos, capaz de perceber golpes e manobras , saber como lidar com a imprensa (recusar entrevistas ou dá-las do jeito mais interessante), fazer panfletos ou ter noção do processo de produção deles e do objetivo da produção de materiais e a intensa disputa política interna acaba fazendo com que o sujeito se familiarizasse com as diversas doutrinas das organizações e as distintas formas de fazer disputa, do pé de ouvido e da difamação, dos conchavos, das intervenções textuais e palavras de ordem, etc. Para o bem ou para o mal, era uma experiência bastante rica. A exigência para a realização desse ideal de estudo, empenho e compromisso com a coletividade me parece evidente.
O paradoxo é que essa experiência gerou um modelo de ‘militante ideal’: o sujeito que vinha do nada, não era filiado a alguma tradição política, sem filiação ideológica, mas sabia fazer de tudo e também botava a mão na massa. Claro, esse modelo é uma mistificação, mas me parece que virou uma espécie de ideal moral na militância goianiense.
O problema é o seguinte: como esse processo pedagógico era possível de ocorrer e as manifestações ainda serem bem organizadas e terem alcançado um relativo sucesso? Já vou antecipando: não eram as redes sociais.
Existiam os anos de estudo do Coletivo Tarifa Zero Goiânia, que permitiu a formulação de princípios e o nosso principal argumento contra o aumento da passagem. Havia um trabalho de anos nas escolas e institutos por parte de organizações (para citar algumas) como a JCA e o MEPR. Existiam anos de experiência acumulada de luta independente nos cursos da UFG. Haviam também os punks e militantes anarquistas que contribuíam de diversas formas. Vários militantes que participaram da frente eram pessoas que já tinham passado por várias coisas, por organizações ‘tradicionais’ (e por isso tinham críticas) ou lutas e organizações que a gente nem conhece. Todas essas pessoas que tinham esses trabalhos, essa formação, compartilharam seus conhecimentos e se dispuseram a debater de igual pra igual com toda aquela gente que ‘vinha do nada’, dispostos a reformular suas prática política para estar afinada com a realidade do momento. Esses militantes mais experientes entregaram todo seu tempo (a dedicação de alguns de fato era 24 horas por dia, 7 dias por semana, o que também era um problema), abriram seus espaços de atuação e com isso foi possível irmos avançando de alguma forma. Esse intercâmbio geracional plural e crítico foi fundamental para o sucesso da empreitada. Mas só foi possível porque o pessoal mais novo e o mais velho estava disposto a aprender, a repensar, a gastar seu tempo para estudar a sério o que estava debatendo.
Esse modelo de militante que vem do nada, para o nada e não é de nada, como disse, é algo que surgiu depois, das disputas políticas internas e de sujeitos que têm um certo interesse em ter o ‘espólio histórico’ de 2013 em mãos. Mas é uma mistificação. Uma mistificação que é um elemento importante na sustentação de parte uma militância descompromissada de gente que assume tarefa e depois não cumpre e não dá nada, que não quer assumir tarefas desgastantes e chatas, que não quer estudar e debater, não quer fazer reflexão sobre estratégia e tática, não quer ler jornal, quer viver do imediatismo e de uma espécie de ‘culto à personalidade’ diminuído baseado em figuras das redes sociais. Uma espécie de militância centrada na sociabilidade, no bar, na marcação de posição, que se orgulha da sua falta de compromisso e de organicidade.
Não era jamais esse o projeto que eu (e outros, ouso dizer) imaginávamos quando construímos a luta do transporte. Sempre criticamos as organizações tradicionais para aprender com seus limites e poder superá-los. Não para voltar a um ultra-individualismo em que a guerra de todos contra todos em busca de popularidade e visibilidade parece ser a regra.
Autonomia não é algo que se ‘torna’ como a frase ‘eu sou autônomo’ parece implicar. Autonomia é sempre uma construção COLETIVA da classe trabalhadora, uma CONQUISTA, uma LUTA e requer esforço, empenho, estudo e pode-se perder a qualquer momento em que se deixa de lutar.