Abatidos e sobreviventes
Houve um momento decisivo em que o destino da força de trabalho do Brasil, EUA e Reino Unido pendeu entre o abate e a engorda para os setores de capitalistas que disputam o controle desses países.
Um crime que ainda não tem nome — e poucos números
(trechos retirados do ensaio publicado originalmente no Passa Palavra)
São 433.238 casos de Covid-19 confirmados oficialmente até agora no Brasil. De acordo com estudo feito pela Universidade Federal de Pelotas, esse número pode ser até sete vezes maior. Um mês atrás não se sabia nem quantos testes haviam sido feitos. Hoje, sabemos: foram… em torno de 350 mil. Estima-se que 75% dos testes comprados são pouco confiáveis, não há inspeção de qualidade, então perdemos na finalidade primeira destas testagens, que seria uma averiguação mais fidedigna da contaminação da população. No fim saímos mais perdidos da utilização desses testes mal feitos do que entramos.
Fato é que com mais de mil mortes ao dia pela pandemia, o Brasil substitui os Estados Unidos como novo epicentro global da pandemia.
Dobra o número de mortes evitáveis oficiais a cada semana, orgulho nacional. 6.681 de assassinatos entre 20 e 27 de maio. O Reino Unido registrava 3.500 mortes evitáveis na mesma semana. Até agora foram pelo menos 35 mil. A pátria grande Brasil fica atrás apenas dos EUA, que registra o impressionante número de 11 mil mortes evitáveis… diárias. O total de assassinatos é 100 mil.
Por que chamo de evitáveis? Basta olhar outros países.
Nova Zelândia registrou zero mortes. Costa Rica registrou zero mortes. Durante toda a pandemia, o Vietnã registrou 26 mortos, sendo zero mortes essa semana. Grécia, depois de vinte anos de austeridade bruta e população idosa, registrou 175 mortes (durante a pandemia inteira). Portugal chegou a mais de mil mortes (totais não diárias… depois de pedirem reabertura precoce). Uruguai teve 22 mortes por Covid-19 (total, até agora). Já o Paraguai, 11 mortes, Argentina depois de três meses, chegou a 508, (menos da metade do que morre no Brasil diariamente).
Existe nesses países algo de diferente e especial que fez com que seja possível que um crime dessa magnitude seja cometido no nosso país e não neles? Um crime ainda sem resposta efetiva de uma sociedade que está sendo assassinada e prestes a sofrer um trauma sem proporções conhecidas? Melhor inverter a pergunta: o que existe no nosso país que permitiu isso?
Houve um momento decisivo em que o destino da força de trabalho do Brasil, EUA e Reino Unido pendeu entre o abate e a engorda para os setores de capitalistas que disputam o controle desses países. Isto aconteceu entre fevereiro e o início de março deste ano, no debate da preparação de medidas de prevenção da pandemia.
Tudo indica que houve uma disputa entre os eugenistas que apostam no descarte acelerado e na redução do consumo dos trabalhadores enquanto outros capitalistas apostavam na qualificação de uma força de trabalho diversificada e no aumento da produtividade.
Os eugenistas venceram não apenas os outros capitalistas, mas derrotaram também e principalmente a classe trabalhadora que não queria ser descartada. Como foi possível?
Deixar eles pensarem que estariam vencendo…
Dj Urso Linguista explica em seu insight tático sobre a forma de ação que usaremos para explicar como fizeram para que não conseguíssemos reagir até ser tarde demais. Fez isso respondendo a um pobre cidadão enquanto este reclamava, em meio a centenas de mortes, que “não se podia ter um dia de paz no Brasil”. Dj Urso respondeu:
A ideia é ocupar o mais rápido possível o espaço público. Colocam-se os “blindados” na frente e vai avançando, sem dar tempo dos adversários sequer se organizarem para resistir. Tenho chamado essa tática de “blitzkrieg discursiva”.
Como isso se deu na prática no Brasil? Soaram os trombones da guerra à pandemia! Foi em fevereiro/2020, quando o Brasil estava a cobrar da OMS que classificasse a Covid-19 como pandemia — na época a OMS considerava apenas uma “doença global”. Foi publicado em fevereiro um Plano de Contingência Nacional Para Infecção Humana pela Covid-19. No campo legislativo foi aprovada a Lei 13.979/20 de combate ao surto de coronavírus.
Ainda em fevereiro, o governo no campo prático, antecipa a campanha de vacinação contra a gripe, pois era sabido que o pico da Covid-19 poderia coincidir com o início dessa epidemia anual no Brasil. Mandetta, então Ministro da Saúde, seguiu seu trabalho miúdo, discreto, de preparação no Brasil a este embate, enquanto Bolsonaro ia a Miami (EUA) encontrar-se com Trump. Aqui, o Ministro da Saúde garantiu verbas para os estados que tivessem dificuldades de enfrentar o surto de corona, instituiu uma normativa proibindo cruzeiros, recomendando autoquarentena a viajantes, sugerindo que não houvesse eventos com aglomerações, o próprio Conselho Nacional de Saúde cancelou sua reunião seguindo tal orientação, normativas facilitando atestados digitais e uma recomendação para assegurar a saúde dos servidores terceirizados foram editadas. As datas posteriores das recomendações das normativas e recomendações para servidores têm a ver com o processo de tramitação de publicação dos documentos, mas a direção em que eles vão é evidentemente a dessa primeira fase.
Uma reportagem da revista saúde divulga com otimismo as medidas que seriam tomadas no dia 13 de março. Coisas comemoradas como já decididas até hoje estão sendo objeto de luta em locais de trabalho como os //call centers//. Ou seja, o que foi decidido não chegou a ser implementado.
Essas medidas estavam previstas desde fevereiro de 2020. O que aconteceu? Seja lá o que for as consequências eram sabidas: “Se não adotarmos nenhuma das medidas, o número de casos no Brasil pode dobrar a cada três dias”, ponderou Wanderson de Oliveira, então Vigilante em Saúde do Ministério da Saúde em coletiva de imprensa.
…até ser tarde demais
Mencionamos que enquanto o Ministro da Saúde fazia alguma preparação no Brasil, Jair Bolsonaro, presidente do país, estava em Miami (EUA). Para quem não lembra, haviam indícios fortes que um plano deliberado e compartilhado internacionalmente de extermínio eugênico citado na “Internacional Olavista”, como escrevi aqui e já foi detectado por jornais de direita como a Revista Crusoé. Vamos demonstrar como isso é transparentemente óbvio com os fatos com uma pequena linha do tempo. Para efeito de comparação e aferição, a linha do tempo brasileira pode ser conferida aqui. A do Reino Unido aqui. Já a dos Estados Unidos aqui.
Ao fim de fevereiro deste ano, Dominic Cummings, principal assessor de Boris Johnson, Primeiro-Ministro da Inglaterra, deixa vazar que a estratégia britânica de combate à pandemia seria “imunidade de rebanho, proteger a economia e, se isso significa que alguns pensionistas morreriam, que pena”. Trump, presidente dos EUA, se reúne com o Primeiro-Ministro Modi da Índia para debater medidas de combate à Covid-19. Em abril, Bolsonaro agradecia efusivamente ao premiê indiano pelo “gesto honroso” de providenciar insumos para produção de cloroquina em massa.
Ainda em março, em Miami, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, que até então aparentava desinteresse pela questão da saúde, para além de alguns remédios “milagrosos”, lança algumas declarações estranhas em Miami após reunir-se com Trump. “Esse vírus está superdimensionado”, “muito do que falam é fantasia, isso não é crise”, “outras gripes mataram mais que essa”.
Enquanto isso, na Inglaterra, a assessoria técnica do governo de Boris Johnson aconselha não ser necessário um lockdown. Esse governo, então, permite um evento de grande importância para o povo inglês, o Festival de Cheltenham, reunindo mais de 60 mil pessoas entre 10 e 13 de março de 2020. Várias pessoas saíram infectadas desse festival.
Quando Bolsonaro volta ao Brasil, já sob pressão e influência dos brasileiros e de seus ministros, está aparentemente comportado, domesticado, sob controle das instituições democráticas. Ele até se reúne com máscara, desconvoca os protestos de 15 de março, não toca nos apoiadores no dia 14 que insistem no ato apesar de ir cumprimentá-los, como é seu costume, até o dia em que ele resolve mudar tudo!
Território ocupado, hora de mudar as regras
A reportagem de Stephen Eisenhammer e Gabriel Stargardter matou a charada… Uma vez chegado ao Brasil, Bolsonaro, coordenado e articulado com seus pares internacionais, tratou de desmontar tudo que foi feito até então. Dois meses de preparação, desfeitos em dias.
Quem quiser conferir, basta olhar a diferença entre a diretriz de 12 de março e 13 de março de 2020. Demorou um pouco para ficar perceptível a real intenção, mas conseguiram desmontar burocrática e politicamente toda a estrutura de cuidado e apoio de combate à pandemia. Em silêncio. Deixando Mandetta como a cara do Ministério da Saúde, a pessoa que havia reconhecidamente preparado várias medidas fortes e eficazes de defesa: a face da vida e da racionalidade contra a face da morte e da loucura.
Um futuro sem mortes que foi evitado…
Saiu em 27 de maio de 2020 um artigo de Fernando Reinach em que ele explica como prefeitos de cidades menores podiam evitar o pior com medidas simples e eficazes à revelia do Governo Federal. A receita não é dele: “é usada com pequenas variações pelos países que controlaram suas epidemias e estão reabrindo suas epidemias”. Esse futuro possível também pode ser vislumbrado, pelos que se interessam, nas ocupações e na rede de solidariedade organizada pelo Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e sua rede de solidariedade. A outra opção — chamada de opção pela morte “é deixar a população se contaminar livremente, as mortes saírem fora de controle e esperar que a doença se vá quando 60 a 70% da população já tiver contraído o vírus e 0,5 a 1% da população tiver falecido”. Pelo menos 220 mil mortes — sendo muito otimista. Mas não foi esse o futuro que aconteceu, apesar dele ter sido possível. A opção pela morte estava posta desde Mandetta, como vocês vão entender lendo o resto do artigo na publicação original no Passa Palavra.