A solução final? (1) Essa indiferença é de quem?
A indiferença não é de todos. É de quem pode de isolar, ficar bem e acha que não vai ser afetado pela morte dos outros.
Dia 6 de agosto de 2020, na live semanal de Jair Bolsonaro, o presidente dialoga com Eduardo Pazuello, o desaparecedor de dados, sobre a última medida do governo federal a respeito da pandemia: a Medida Provisória (MP) que liberou quase 2 bilhões de reais viabilizar a produção e a disseminação de uma das vacinas testadas no enfrentamento à pandemia do coronavírus. “Janeiro é uma boa aposta”, diz Pazuello sobre a previsão de data. Mais informações sobre a aposta de Bolsonaro podem ser vistas nesta notícia. Daí acontece esse diálogo:
“Se Deus quiser, se dá tudo certo, parece que tá indo bem... nós ficamos livres do problema”, diz Bolsonaro.
“É a solução final da pandemia”, diz Pazuelo, “é a vacinação”.
Depois Bolsonaro fala de como vamos “tocar a vida” com essas cem mil mortes e se safar desse problema aí. Afinal, as cem mil mortes já estavam previstas desde algum tempo.
Para mim isso é uma declaração que corrobora o diagnóstico que esses gestores de extrema direita veem a pandemia como oportunidade de aplicar uma “solução final para essa e as próximas crises que virão de agora em diante” através de um massacre “pensado e legitimado como tal”. Expliquei porque penso assim na Hora do Abate.
A questão que gostaria de colocar é: quem é esse grupo que eles apostam que vai deixar eles normalizarem nossas mortes? Vai dar certo? É final mesmo, essa solução? O que podemos fazer?
1) Quem são os indiferentes?
Em maio o presidente da XP investimentos já dizia que “o pico da covid-19 já tinha passado”. Pras classes altas. Haviam 7321 mortes no país.
Christian Dunker argumenta que a explicação da indiferença do “povo” é uma negação da realidade: “"A gente começa, então, a desconhecer o perigo real. A gente começa a achar que isso não acontece com a gente, acontece só com os números, com aqueles que estão lá longe, com aqueles que não me afligem e não me tocam muito de perto, que não são da minha família”.
Mas será mesmo negação da realidade? Porque quem morreu não foram essas pessoas que declaram em público sua indiferença, nem seus familiares. Só em casos raros. A vítima padrão da covid-19 no Brasil é pobre, parda e mora longe de quem decidiu ser indiferente – e isso foi comprovado em vários estudos, entre eles o que utilizou os dados do SUS divulgado pela revista Época.
Raquel Rolnik descobriu que a circulação que mais explica as mortes não é a circulação por prazer ou diversão. É a circulação compulsória, por trabalho (essencial ou não) que se relaciona a maior parte das infecções. Com isto, os estratos de renda maior e especialmente quem não trabalha está ainda mais fora da curva de quem foi infectado e correu risco de morrer.
Esses trabalhadores que são essenciais (na saúde, por exemplo) muitas vezes enfrentam situações extremamente precárias no seu dia a dia de medo e isolamento ou estão sendo hostilizados e isolados socialmente nos espaços de convivência em que os que não estão expostos aos riscos estão localizados. “Aqui não tem pandemia”, diz um síndico de prédio que agrediu um médico.
Vamos colocar os pontos nos i’s. Como Laura Carvalho, Luiza Nassif Pires e Laura de Lima Xavier comprovaram já no início da pandemia, baixa escolaridade e desigualdades sociais são determinantes para elevação da taxa de transmissão e severidade da covid-19 no Brasil.
Outro estudo coletivo que cruzou renda e mobilidade pelo celular comprovou, por seu lado de Joakim A. Weill, Matthieu Stigler, Olivier Deschenes e Michael R. Springborn comprovou que renda e capacidade de se isolar socialmente estão diretamente relacionadas. Quanto maior sua renda, maior sua capacidade de se isolar e sua percepção que a pandemia está “tudo bem”. Quanto menor sua renda, menor sua capacidade de se isolar e maior a exposição a mais problemas de saúde ainda.
A indiferença não é de todos. É de quem pode de isolar, ficar bem e acha que não vai ser afetado pela morte dos outros. É, especialmente, dos patrões que podem se isolar enquanto podem impor a exposição aos extratos mais pobres de trabalhadores.