“A culpa não é nossa” e “precisamos fazer alguma coisa agora”
Entre a luta do lockdown e o tratamento precoce há um fio tênue
Acompanhei movimentos anti-lockdown durante a “segunda onda” da pandemia em várias cidades brasileiras em fins de 2020. Mobilizados pela hashtag #ACulpaNãoÉNossa, a associação de comerciantes de Manaus[1] e a Associação de Bares e Restaurantes em Belo Horizonte[2] saíram, em seus vídeos, do discurso individualizado para a dimensão coletiva. “A culpa não é nossa”, mas precisa ser feito o que nós queremos: os negócios precisam ser retomados. As medidas sanitárias, ao invés de serem vistas como forma de proteger a população das piores consequências da pandemia, são entendidas como punição diante dos “descuidos”, do governo ou da própria população. Buscam-se, então, os culpados. O depoimento, coletado por WhatsApp, de uma comerciante de Passos (MG) contra o lockdown em sua cidade foi significativo: “os maiores culpados são os consumidores. Eles não querem respeitar a lei”.
O poder público “que não fiscaliza” é um deles. Mas, sobretudo, as pessoas “que não se cuidam”, que fazem festas: é o lazer e o “descuido” que espalham as infecções. O trabalho e as atividades econômicas não são fator de infecção pois existem “protocolos”, que nunca são muito claros. O papel do poder público seria fiscalizar a aplicação desses protocolos - aí estaria uma função legítima do Estado na pandemia. Porém, na prática, isso se desdobra em uma hiper-individualização das responsabilidades e legitima, de forma contraditória, a mobilização dessas pessoas contra qualquer política pública e coletiva de controle da transmissão do vírus. As multas que seriam decorrentes dessa fiscalização, por exemplo, são vistas como abusivas, porque o comportamento de não usar máscara ou não seguir o protocolo não tem responsabilidade clara - podendo ser atribuição individual do cliente ou do empregado, e não dos estabelecimentos. A culpa, sobretudo, é atribuída ao lazer clandestino, fora de qualquer comportamento submetido às responsabilidades patronais.
Uma manifestação de músicos em Pernambuco[3] esclarece o que os trabalhadores querem do poder público: fiscalização e controle apenas dos “protocolos”. Não querem restrições, não querem políticas sociais (“auxílio”), querem apenas “poder trabalhar em segurança”. O combate à pandemia, uma questão global que requer a cooperação de todos e a proteção dos setores mais vulneráveis, se torna uma questão de cada um por si, fiscalizado pelo governo. Essa operação também é feita por setores desses vulneráveis que “não querem ter que vender seus instrumentos para sobreviver”. A manifestação dos comerciantes e empregados em Limeira foi significativa: levaram um caixão para o centro da cidade representando não as mortes pela covid-19, mas as mortes dos empregos – na verdade, a morte do trabalho.[4] Essas “mortes” têm um sentido mais profundo do que parece. Como colocou uma comerciante de Passos (MG), “o trabalho é definido por Karl Marx como a atividade sobre a qual o ser humano emprega sua força para produzir os meios para o seu sustento. O Sustento (...) é aquilo que é utilizado para garantir a vida; alimento, mantimento. Trabalho é vida”!
Nessa perspectiva, as mortes dos empregos causados pelo lockdown seriam antinaturais, um atentado contra a vida, enquanto as mortes por covid-19 estariam dentro de uma certa ordem de normalidade e da natureza. Bolsonaro, no início, também se expressou nesses termos: “agradeço e reafirmo a importância da colaboração e a necessária união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos”[5] – não das vidas, mas da vida.
Quando questionado pelo Tribunal de Contas da União sobre o que justificou a produção extra de cloroquina, o Exército Brasileiro respondeu que produzir cloroquina "seria o equivalente a produzir esperança a milhões de corações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo."[6] Muitos encararam como piada, mas há uma lógica no enunciado da cloroquina como esperança. Casarões e Magalhães (2020) dão uma dica com o conceito de populismo médico: “um estilo político performático durante crises de saúde pública que joga ‘o povo’ contra ‘o sistema’ usando alegações de conhecimento alternativo para lançar dúvidas sobre a credibilidade de médicos, cientistas e tecnocratas”.
Esse estilo político opera no Brasil pela fusão de uma proposta econômica neoliberal de origem miseana – vide a defesa de Hélio Beltrão (2020) do remédio como solução milagrosa para a crise do covid-19 – com o “protocolo de colapso” proposto por uma rede de médicos para enfrentar a crise sanitária aos gestores públicos, privados e pacientes. A experiência de Belém na live “Protocolo de colapso” foi decisiva para essa rede de médicos que se forma no Brasil.[7] Ela forneceu a evidência empírica que “comprova” que o tratamento precoce é a resposta eficaz, ainda que não validada pela ciência tradicional. O colapso foi o momento entre maio e abril de 2020 em que as redes hospitalares de Belém colapsaram e as farmácias ficaram sem estoque de remédios. Nesse momento, os médicos tiveram que improvisar para salvar a vida dos pacientes. Abundam nas lives relatos de casos, experiências dos planos de saúde e das clínicas públicas, que confirmariam que o tratamento precoce salva vidas, e que sugerem quem não teve acesso ao tratamento levou a pior. Como colocou a Dra. Nise Yamaguchi: “a importância destes dados é que são de vida real”.
É preciso fazer algo contra a doença e a resposta é fornecida pela experiência do médico e pelo movimento ativo do paciente de buscar sua ajuda. Não se pode “abandonar o paciente” e deixá-lo "ficar em casa esperando a morte": a imobilidade equivale a aceitar a inevitabilidade da desagregação da vida. Não apenas como medida médica, mas também como princípio de vida. Só se vive em movimento, e o tratamento viabiliza que as pessoas possam seguir com suas atividades e sobreviver. Esse interesse coincide com o dos planos de saúde e dos empresários que não querem que seus empregados fiquem parados em casa. Coincide também com a resposta a uma situação de crise hospitalar, em que as pessoas são muitas vezes obrigadas a se responsabilizar por uma hospitalização que deveria ser garantida pelo poder público. O que era para ser exceção, no entanto, se transforma em protocolo – o protocolo do colapso se torna uma resposta efetiva para impedir o colapso, e a crise se torna o modelo da normalidade.
Existe, então, interesses de certas instituições e grupos no tratamento precoce que não são científicos e epidemiológicos, mas não chegam a ser negacionistas. Seu interesse é na continuidade do trabalho e da normalidade. De um lado, há a gestão dos planos de saúde e, em alguns casos, a gestão pública da saúde, que buscam reduzir as hospitalizações. Do outro, há o interesse dos pacientes que querem uma resposta, e de setores como hotéis, pousadas, e patrões que precisam que o trabalho continue. Qual o impacto concreto? Um filho de paciente em Belém relata:
Meu pai tem plano de saúde na Hapvida e quando começou a sentir os sintomas, procurou uma unidade depois de quase uma semana, por medo de sair de casa etc. Os sintomas não eram tão fortes. Lá, prescreveram azitromicina, ivermectina e cloroquina, sendo o último entregue em caixas, por eles, em mãos. Nenhum exame de covid foi feito. Meu pai tinha diabetes e tinha comunicado isso ao plano. (...) Não houve melhora. Alguns dias depois, não aguentando mais aquele estado, decidimos interromper as últimas doses de cloroquina e levá-lo ao pronto socorro, onde ficou internado por 15 dias, sendo 5 de UTI. Ele teve 80% do pulmão comprometido, mas felizmente conseguiu sua recuperação e hoje está em casa.
Independente da alegação de salvar vidas e reduzir a necessidade de hospitalizações, na prática isso pode ser um motivador para as pessoas, com o remédio em mãos, não irem aos hospitais, mesmo estando no grupo de risco. Graças ao remédio, podem aguentar mais do que fariam normalmente antes de buscar uma hospitalização. Numa espécie de profecia auto-cumprida, isso gera efeitos reais de redução das hospitalizações como forma de controle da crise. Acredita-se então que o remédio fez com que a hospitalização não fosse necessária e contribuiu para a melhora. Ao mesmo tempo, os casos que acabam vindo a óbito são encarados como naturais: afinal, “nenhum tratamento é infalível”.
Nesse sentido, o tratamento precoce não se reduz a um simples negacionismo científico dos médicos, pacientes ou gestores públicos. É uma resposta integral à crise social que representou a covid-19 para a sociedade brasileira. Enquanto tal, une planos de saúde como a Unimed e Hapvida[8]; bilionários como Luciano Hang[9] e Carlos Wizard, que criou um “conselho médico-científico”[10]; muitos médicos que exibem com orgulho em seu Instagram o slogan “Eu utilizo o tratamento precoce”; e cidadãos em busca de respostas ao risco e possibilidade de retorno ao trabalho. É um modo acessível de retomar a esperança no sistema, na vida e na normalidade, que foram colocados em cheque após a irrupção da crise. Nas palavras de um paciente: “é a minha dose de esperança”.
[1]https://www.facebook.com/kilomaniamanaus/videos/3376303945831874. [2]https://www.facebook.com/watch/?v=3800017466715315. [3]https://www.facebook.com/tvclubeoficial/posts/3963023213755772
[4]https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2021/01/25/donos-de-bares-levam-caixao-para-ruas-de-limeira-em-protesto-contra-fase-vermelha-aos-fins-de-semana-e-durante-a-noite.ghtml.
[5]https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2020/03/grande-pacto-pela-preservacao-da-vida-e-dos-empregos-conclama-bolsonaro-em-pronunciamento.
[6]https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/12/22/em-oficio-exercito-defendeu-sobrepreco-de-167-em-insumos-da-cloroquina-por-necessidade-de-produzir-esperanca.htm
Oi, Victor Hugo, tudo bem? Meu nome é Eduardo Goulart, sou jornalista e trabalho na Abraji. Para a próxima edição da newsletter Investigadora (https://investigadora.substack.com/), pensamos em abordar a reportagem "'Médicos pela Vida' são diretamente ligados a grupo empresarial que produz ivermectina".
A ideia é contar sobre os bastidores da investigação e explicar como o trabalho foi feito. Por isso, gostaria de saber se você pode nos dar uma entrevista para falar sobre a matéria.
Por favor, você pode me passar seus contatos para eu explicar melhor a pauta? eduardo@abraji.org.br
Desde já, agradeço pela atenção.
Oi, Victor Hugo, tudo bem? Meu nome é Eduardo Goulart, sou jornalista e trabalho na Abraji. Para a próxima edição da newsletter Investigadora (https://investigadora.substack.com/), pensamos em abordar a reportagem "'Médicos pela Vida' são diretamente ligados a grupo empresarial que produz ivermectina".
A ideia é contar sobre os bastidores da investigação e explicar como o trabalho foi feito. Por isso, gostaria de saber se você pode nos dar uma entrevista para falar sobre a matéria.
Por favor, você pode me passar seus contatos para eu explicar melhor a pauta? eduardo@abraji.org.br
Desde já, agradeço pela atenção.