Entre Médicos: um grupo dedicado à experimentação e à "ousadia para tratar" na pandemia
Michele Chechter não é a única do grupo Entre Médicos que aplica a nebulização.
Mayra Pinheiro, diretora da Secretaria de Gestão e Trabalho e Educação em Saúde do Ministério da Saúde (SGTES) em uma live em 14 de abril, divulgada pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) do Amapá, relata estar sob ataque: “nesse momento em que a gente entra aqui na live, eu acabo de receber uma intimação do Ministério Público do estado do Amazonas que abre inquérito contra mim e outros gestores porque nós orientamos o tratamento precoce no estado do Amazonas para o enfrentamento da pandemia”, diz aos presentes na live, grupo que incluía diversos “influencers” do tratamento precoce, “mas a gente segue certo que todas as ações que nós fizemos para salvar vidas, independente da postura de grupos militantes que não têm como valor maior a vida, não vão ceder às pressões, a gente não vai desistir do bom combate”. Mayra se referia à intimação que recebeu do Ministério Público Federal do Amazonas, à qual respondeu com testemunho confirmando as suspeitas de que havia organizado uma visita, em janeiro de 2021, para promover a cloroquina antes do estopim da crise em Manaus.
Entre os presentes na live que faziam parte desse grupo referido como “a gente”, mas não citados na divulgação, estava a anestesiologista e fundadora dos grupos “Entre Médicos”, Luciana Cruz. Ao final da live, Luciana relatou que achou muito grave o processo que eles estão sofrendo, que “é algo que atinge a todos os colegas; eles querem nos intimidar. Esse foi o segundo golpe no dia ao nosso grupo, houve o primeiro com a Michelle Chechter, com uma matéria muito maldosa da Folha de S. Paulo”.
“A gente vai fazer alguma coisa, conversar com a Dra Mayra, com a Dra Chechter, a Eliane Scherer também sofreu uma matéria muito agressiva por ter feito as nebulizações em Camaquã e não podemos deixar fazer isso, hoje são com elas e amanhã somos nós. Vou conversar com a doutora Mayra e nós podemos fazer uma pequena comissão. Unidos, a gente não perde a coragem e não perde a motivação. A gente sabe a quantidade de pessoas que estamos ajudando e ainda temos que passar por isso”. Michele Chechter foi revelada pela Folha de S. Paulo como uma das médicas que nebulizou pacientes com hidroxicloroquina em Manaus em fevereiro desse ano.
Michele Chechter não é a única do grupo Entre Médicos que aplica a nebulização. Nas mensagens de um dos grupos de Whatsapp do #EntreMédicos, observamos vários médicos que relatam estar realizando em seus pacientes a prática não aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
20/03/2021
“Pessoal .. ontem minha mãe saturando de 90 - 92%
Muito cansada, falando com dificuldade.
Ela mora a 800km de distância. Meu padrasto trouxe ela às pressas pela estrada.
Ao chegar fiz duas nebulizações com hidroxicloroquina no lapso de 1 hora e agora pela manhã mais uma.
Saturando a 99%. Dormiu a noite toda bem, sendo que há 5 dias estava sem dormir.
Fora isso, estou administrando bicalutamida que já comecei ontem. É absurda a diferença com as nebulizações com hidroxicloroquina, isso que nebulizei só com o aparelho, sem O2”
23/03/2021 Médico 4: “Sobre a Nebulização com HDQ. “ Eu estou no 8º paciente, todos bem, sem nenhum efeito colateral. O que percebi foi uma eficácia maior do Reuquinol em relação ao manipulado.”
21/04/2021: Médico 1: “Sou totalmente a favor da HCQ. Faço reumatoped há 30 anos, então conheço a droga há 30 anos. E tenho gostado dela via Inalatória também. Não temos o respaldo do CFM mas vários colegas médicos e de saúde me procuram pra orientação, nesses eu faço sem stress, a maioria quer fazer. Claro que temos que ter cuidado mas em amigos, eu mando ver”
Médico 2:”’Também já fiz e concordo com vc. O procedimento.dá excelentes resultados. É puro tabu”.
Em uma das interações, um médico de Goiás indica para outro uma farmácia de manipulação em que se consegue hidroxicloroquina manipulada para nebulização. O número indicado confirmou que manipulava hidroxicloroquina em 200mg para 7,5ml em formato de filetes para nebulização e que estava “vendendo muito para Goiânia”, uma cidade a 170 km por encomenda. Tratava-se de uma farmácia de manipulação em Goianésia.
Carine Petry, médica do sono, otorrinolaringologista e também fundadora do “Entre Médicos”, passou esse recado para os médicos desse grupo que trocavam experiências sobre suas nebulizações:
“22/04/2021: Recado da Conselheira do CFM
Dra Yascara
Colegas . Não usem cloroquina nebulizada , mesmo em solução manipulada . É considerado uso experimental e só pode em protocolo de pesquisa . Não só no Brasil como em todo lugar . É arriscado se tiver problema você se expõe a processo”.
Carine Petry, Yascara Lages e o Conselho Federal de Medicina(CFM) não responderam a pedidos de comentário da reportagem. Em 12 de maio de 2021 a prática da nebulização com hidroxicloroquina foi considerada experimental e proibida pelo CFM, exceto com aprovação do CONEP.
Perguntei a Bruno Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da USP, por que teria acontecido essa recomendação informal, uma vez que o CFM vem permitido a “autonomia médica” irrestrita. “Parece ser só pelo medo da cobertura negativa da mídia e pelo medo do processo, como está escrito. É exatamente isto que eu busco. Que eles condenem tudo o que não funciona. Só assim os médicos não recomendarão mais”, diz Bruno Caramelli, que entrou com representação no Ministério Público Federal para obrigar o Conselho Federal de Medicina a recomendar que não se façam tratamentos errados. Ele arremata: “É criminoso. Há um milhão de etapas antes de usar em nebulização em pessoas. Deve haver estudos em laboratório, analisando diluição, estabilidade, depois testes em animais... um mundo de coisas”.
Para André Bacchi, farmacologista e professor da Universidade Federal de Rondonópolis, a nebulização de hidroxicloroquina “é o ápice de todos esses problemas que vêm acontecendo”. Desde o problema ético de o uso não ser feito em um contexto de pesquisa experimental aprovado, até o problema da comprovação da eficácia da cloroquina, que não há, passando pelo problema da forma farmacêutica, que não é adequada para a via respiratória. “Você está abrindo mão de tudo em nome de uma suposta autonomia médica, bancando algum tipo de heroísmo, mas sem racionalidade.” Ele conta que a hidroxicloroquina, quando usada na forma de nebulização, apresenta os seguintes problemas: “o comprimido de hidroxicloroquina é feito para via oral, ou seja, além do princípio ativo (hidroxicloroquina), há também os excipientes, que são aqueles outros componentes que dão a forma pro comprimido, a coloração, a conservação. Todo comprimido tem o seu princípio ativo e tem esses outros componentes juntos. Entre estes excipientes, podemos encontrar dióxido de titânio, estearato de magnésio, lactose, amido e por aí vai, que são utilizados para absorção via oral para que o comprimido possa passar pelo trato digestório e ser adequadamente absorvido. Então, dependendo do que você nebulizar, se você pegar um comprimido desse, que é feito para via oral, e o utilizar pra diluir e fazer uma inalação, você vai fazer a inalação não apenas de hidroxicloroquina, mas também desses outros componentes que estavam no comprimido, alguns dos quais podem provocar reações inflamatórias e dano aos pulmões.”
O grupo “Entre Médicos” tem forte presença nas redes sociais: tem mais de dez grupos lotados no Whatsapp e um perfil fechado no Instagram. Para conseguir acessar o perfil no Instagram, o grupo informa que só mandando foto com o número de registro do Conselho Regional de Medicina. Até a escrita dessa reportagem, 5244 médicos haviam passado pelo procedimento para ter acesso aos conteúdos exclusivos do perfil e estavam aprovados como “seguidores”.
E que conteúdos são esses? São principalmente conteúdos “didáticos”. Há posologias de medicamentos como corticoides e anticoagulantes. Prints de Whatsapp que tratam de experiências clínicas. Lives gravadas de forma caseira. Em uma delas, Michelle Chechter conta sua experiência fazendo tratamento precoce com gestantes e puérperas. Repercutindo a experiência, Angélica da Silva Figueiredo comenta que já tratou 8 grávidas no mesmo regime:
Outro material didático do Entre Médicos é uma live em que Priscila Coelho Rabelo, ginecologista e obstetra, faz uma proposta de tratamento precoce para gestantes. Pedi para Melania Amorim, médica ginecologista e obstetra, professora associada doutora de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Campina Grande, explicar o conteúdo da orientação produzido por Priscila no Instagram para outros médicos. “No primeiro trimestre, ela orienta fazer nitazoxanida e hidroxicloroquina e, no segundo e terceiro, ivermectina na grávida padrão de até 90kg com 2 comprimidos de 15 em 15 dias”, diz Melania, “Isso aí a fonte é ‘VOZES DA MINHA CABEÇA’”.
“Que as gestantes têm maior risco já se sabe há tempos e essa é a minha luta”, reitera a professora, “para que sejam incluídas como grupos prioritários de vacinas e tenham políticas públicas efetivas. Mas isso que esse grupo propõe é um teste inconcebível com uma população vulnerável. Para ser aprovado, teria que ter tido a efetividade demonstrada fora da gravidez. Para ser implementado tal protocolo, teria que passar por um comitê de ética em pesquisa tendo um forte rationale que seria ter tido a efetividade demonstrada fora da gravidez”. “Caso contrário”, diz Melanie, “voltamos à era do Talidomida”.
“O presidente claramente investiu em uma estratégia de empurrar o povo para as ruas supondo que viria a imunidade de rebanho para garantir a retomada mais rápida das atividades econômicas - e isso à custa de promover aglomerações, desincentivar uso de máscaras, não comprar vacinas, negar a gravidade da pandemia, propor e fazer propaganda de medicações sem eficácia”, diz Melanie Amorim. “Se você finge que isso não está acontecendo, está alinhado com ele, se você propõe essas drogas, está alinhado com ele”.
Priscila Coelho Rabelo não respondeu a pedidos da reportagem, por Whatsapp, ligação e Instagram, para que comentasse o tema.
Outro material da “Entre Médicos” disponível para os que mostram seu CRM às administradoras do perfil é uma live chamada “COVID para crianças: nossa prática a beira do leito”.
Nessa live, visualizada mil vezes e disponível no Instagram, é proposto, baseada na suposta “experiência no leito” das palestrantes: hidroxicloroquina em crianças, até mesmo em bebês menores de 6 meses; corticoides para crianças mesmo precocemente; enoxieparina baseada em exames. Conversei com Renato Amorim, pediatra e estudioso da Medicina Baseada em Evidências, sobre a live e ele me disse: “roteiro para uma escalada de iatrogenias”. Iatrogenia é a consequência negativa gerada por um ato médico. “É na melhor das intenções você ter uma concepção errada sobre a doença, você entrar numa espiral de tratamentos errados porque você errou o diagnóstico e o tratamento vai levar a complicações e a doença vai continuar acontecendo e você julga que o sintoma não melhorou e entra com outras medicações, essas medicações por sua vez vão ser baseadas em um diagnóstico errado também e por aí vai”. Ele explica que dar esses remédios sem teste de eficácia e segurança em pacientes que tendem a evoluir bem é mais erro médico do que “precaução”.
Priscila e as médicas da live “COVID na criança” não estão sozinhas em suas recomendações de hidroxicloroquina para gestantes e crianças. O Ministério da Saúde em agosto de 2020 propôs uma orientação para que gestantes e crianças tomem esses mesmos remédios sem comprovação de segurança e eficácia. Pode ser conferido no antigo site do Ministério da Saúde.
As plataformas como canais de acolhimento para o tratamento
O Instagram nos informou que tem uma política de combate a conteúdos desinformativos relativos à saúde que consiste principalmente em colocar “labels” ou adesivos informativos no conteúdo e reduzir seu alcance. Informados que o perfil “Entre Médicos” tinha conteúdo em que se orientavam médicos a prescrever especificamente a gestantes e crianças, sem eficácia comprovada, nem teste de segurança, a plataforma nos informou sobre suas políticas de moderação de conteúdo sobre saúde que podem ser verificadas nos links disponíveis para todos os usuários.
Os motivos do apelo
André Janones, deputado pelo Avante e influenciador digital, tem se colocado a favor das vacinas e contra o tratamento precoce nas suas redes sociais. Janones tem cerca de 300 mil seguidores no Facebook, onde faz postagens e dialoga com as pessoas sobre temáticas de saúde e política. “Eu tenho mais ou menos o mesmo público que o presidente nas redes sociais”, diz Janones, “mas como o presidente escolheu o caminho do caos, eu escolhi o contrário”. Perguntei a ele como era a experiência de conversar sobre a pandemia com as pessoas. “A vacina foi mais fácil, é muito fácil desmentir as fases levantadas de que ‘o primo do porteiro do prédio da minha amiga foi vacinado e saiu voando’ porque nunca é nada razoável e com fontes”, conta o deputado. “Agora o tratamento precoce é mais complexo, uma vez que as pessoas costumam usar a própria experiência pra atestar eficácia. É muito comum ler ‘eu te apoio, mas aqui em casa tomamos e estamos todos bem, então discordo’”.
Letícia Cesarino comenta que “antes você confiava nos especialistas. Hoje tem esse fenômeno: gente que fala ‘eu não acredito no sistema, na mídia, no mainstream, eu acredito no que eu vejo, na minha experiência pessoal’ e como a internet é focada no eu, ela tende a confirmar esse tipo de epistemologia”. Por isso, conclui “a evidência última de um tratamento é a própria pessoa ser a cobaia. É totalmente solipsista. É uma doença que atinge 7 bilhões de pessoas em contextos diferentes. É como se não existisse sistema, como se não existisse coletivo, como se fosse tudo na pessoa o teste de realidade”.
Mas existe algum critério. Janones conta que “quando eu estou falando do auxílio, as pessoas me dão total credibilidade, entre acreditar em um YouTuber, em um jornal ou em um deputado, elas escolheram acreditar em um deputado, até porque a fonte está lá na Câmara”. Mas quando a situação é o auxílio, a relação muda e “o médico tem N vezes mais credibilidade que eu, uma vez que as pessoas entendem que é a função dele e ele se prepara para aquilo ali”.
Não é com qualquer médico. Maria* (nome fictício), de Três Lagoas (MS), conta que um paciente não aceitou sua conduta de não receitar o tratamento precoce. Ela teve que chamar a polícia. “O paciente chegou com um papel do exame do COVID detectável na mão falando que queria as medicações. Ele disse: ‘não doutora, eu sei que a senhora estudou pra isso, mas eu quero que a senhora me prescreva’”. Ele insistiu tanto, frente à resistência da médica em recusar, que a polícia teve que ser chamada por “perturbação do trabalho”. Gabriella Lotta comenta que “muitos profissionais relatam que a relação com usuários ficou muito mais difícil. O contexto geral de stress pela doença, aumento da demanda, falta de protocolo e de informação adequada, além do caos criado diariamente pelo presidente, também dificulta a ação deles. Profissionais relatam crescimento de hostilização dos usuários, seja porque estão desconfiados dos profissionais, seja porque têm medo deles ou por desejarem tratamentos indicados pelo presidente e que não possuem comprovação científica. Eles exemplificam suas dificuldades citando situações em que pacientes gritam exigindo cloroquina nas unidades de saúde. Também citam cobrança por atendimento mais rápido, por garantia de medicamento, equipamento, vaga na UTI etc”.
Letícia Cesarino comenta que isso é um fenômeno típico do neoliberalismo na saúde: “o cliente quer receber o que ele tá pagando, mesmo que seja SUS. Mesmo no serviço público, ele vê o Estado como um provedor de serviços. Eu pago meus impostos eu quero do meu jeito - que é a personalização exacerbada na internet. É a noção do cliente aplicada à medicina”.
De acordo com o mesmo estudo citado no início da reportagem, do NEB, a. respeito da situação dos profissionais de saúde na pandemia, 72% dos trabalhadores da área da Saúde entrevistados não receberam nenhum treinamento durante esse período. “O cenário de despreparo para lidar com a Covid-19 permanece desde o começo das nossas pesquisas, em abril de 2020. Como falta esse treinamento, a consequência é que os profissionais estão: 1) buscando conhecimento por vias próprias (que podem não ser confiáveis); 2) aprendendo uns com os outros ; 3) adequando suas ações com base na tentativa e erro, na experimentação”, afirma Gabriella Lotta, que arremata: “se a informação não vem do governo, pode vir de qualquer lugar”.