Foi demitido hoje o chefe da Polícia Rodoviária Federal, um mês após a divulgação do vazamento em que Bolsonaro reclamava de uma nota de pesar pela morte de uma gente de COVID-19.
Foi essa a nota que causou a demissão:
Apesar do caso ter sido noticiado como triste e lamentável pela falta de humanidade do presidente, por algum motivo não se fala das causas da demissão. O que é que nessa nota poderia ter causado a demissão de um comandante de seu cargo? Deve ter sido algo importante, não?
O incrível é que Bolsonaro efetivamente falou o motivo com todas a letras: deveria ter sido adulterado o registro da sua morte e de que agora em diante se devem adulterar as causas mortis de servidores e trabalhadores mortes de COVID 19. O comandante foi demitido por se recusar a ser cúmplice na acobertamento de uma morte.
Portanto, leitor, pra que a gente consiga chegar em alguma leitura que faça sentido, vamos partir de uma premissa. Levar a sério o que as pessoas dizem, a não ser que a prática contradiga o discurso. Combinado? Então quando falarmos de intenções e objetivos, vamos falar dos objetivos expressos ou, no máximo, implícitos pelo contexto nas falas dos atores.
O que é que Bolsonaro disse realmente a respeito dessa nota? Vamos ver o vídeo?
Uma pessoa jovem, saudável, morrer de covid, isso não pode acontecer. Vocês tem que resolver isso daí… e a forma é adulterando o registro. Como se diz no filme-hino do fascismo brasileiro: “Corpo encontrado na praia é afogamento”. Pessoa que morreu com comorbidade…. é, bem, é o que?
O inimigo agora é outro
Jair Bolsonaro em 2017, ainda pré-candidato, já nos dizia que a especialidade dele e dos seus colegas de profissão era matar. Na época, ele estava defendendo um polêmico projeto que defendia a liberação da “fosfoetanolamina”. “Cura ou não cura, eu não sei. Sou capitão do exército, minha especialidade é matar, não é curar ninguém. Mas apresentei junto com alguns colegas e aprovamos. Dá certou ou não dá? Vamos dar a chance daquele que tem o dia marcado para morrer tomar a pílula”. Seu companheiro de bancada comemorava esse primeiro passo na “evolução não só do Brasil, mas para o mundo”.
Na mesma entrevista, no seu característico estilo de falar “caótico”, ele amarrou: “Vocês nos treinam, nos pagam para isso. Eu não quero é falar que a polícia tem que matar inocente, não é por aí”. Não precisa falar: se morrer, é porque é suspeito (mesmo se estiver desarmado). O policial não tem de matar nenhum inocente: o suspeito simplesmente é morto. Tal como um objeto cai no chão, puxado pela gravidade. Uma árvore que cai em uma floresta sem ninguém para ouvir. Um não acontecimento. Um nada que deixa de existir. Onde ele queria chegar com isso?
A PRF deveria ter justificado (como a polícia costuma fazer com as vítimas-objetos habituais de suas mortes) com características da própria vítima, suas comorbidades. Em outras palavras, devia lembrar da responsabilidade do próprio morte pela sua morte.
Vamos lembrar de outro episódio emblemático de um universo atrás (ano passado, 2019) em que um músico, sua mulher e seus filhos foram metralhados por soldados assassinos por motivo nenhum. Apenas o músico morreu — e um transeunte que se atreveu a não ser cúmplice. Uma semana de silêncio após o incidente e depois de cobranças da esquerda por seu “silêncio ensurdecedor”, Bolsonaro finalmente se manifestou: “o exército não matou ninguém”. Cuma?
“O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de assassino. Houve um incidente. Houve uma morte. Lamentamos ser um cidadão trabalhador, honesto”. A natureza do incidente que foi noticiado como “homem morre após carro ser atingido” foi contada assim por uma testemunha que estava indo junto para um chá de bebê:
Eu não vi onde foi o tiro, mas eu acho que foi nas costas. Só que a gente pensou que ele tinha desmaiado no volante (…) A gente saiu do carro, eu corri com a criança e ela também. A gente saiu do carro, e mesmo assim eles continuaram atirando (…) Tinha um morador passando aqui na hora, que estava aqui no meio, foi tentar ajudar o padrasto e também foi atingido no peito” (…).
Absurdo né? Inacreditável. Não parece real. Onde estão as instituições, os militares razoáveis? Vamos ver o que pensava o militar mais razoável ao alcance da mão. A “alternativa” Mourão também se manifestou depois de forte pressão da esquerda e da sociedade civil nas redes sociais sobre sua opinião a respeito do incidente em que o homem morreu: “sob forte pressão e sob forte emoção, ocorrem erros dessa natureza”.
Talvez o leitor pense que o erro foram os mortos? Não, o erro foi literal, o tiro errou o alvo: “os disparos foram ‘péssimos’”, já que os 80 tiros só atingiram uma pessoa dentro do carro. “Houve uma série de disparos contra o veículo da família, então você vê que foram disparos péssimos, né? Porque, se fossem disparos controlados e com a devida precisão, não teria sobrado ninguém, o que seria ainda pior a tragédia”.
Fica a lição. Quando os disparos forem controlados, com a devida precisão, não vai sobrar ninguém. Melhor não nos iludirmos quando os executores nos fazem o favor de avisar com tanta antecedência enquanto acobertam seus crimes. Quando um policial ou militar falar que não quer falar de morte ou de matar no Brasil, não precisa hesitar: eles querem nos matar e esconder nossos corpos.