Auxílio emergencial como salário doméstico?
Não é mais aceitável que as mães tenham que se virar em qualquer condição para manter seus filhos vivos.
Já na gênese do programa de transferência de renda se sabia que a maior parte dos afetados pelo auxílio emergencial seriam as mulheres trabalhadoras do mercado informal de trabalho brasileiro. Na época, de acordo com reportagem da Gênero e Número se dizia que “na renda emergencial aprovada na crise do coronavírus, receberão a renda temporária por serem as chefes provedoras dos arranjos familiares”.
Quais eram os motivos pra isso? Primeiramente, vamos aos números. No CadÚnico – usado como um dos critérios para se obter o auxílio - 83% das famílias inscritas eram chefiadas por mulheres. Além disso, entre os 40 milhões de cadastrados 62,6% eram mulheres. Já entre os 38 milhões de informais “invisíveis” fora de qualquer cadastro, Lauro Gonzáles, professor da FGV, nos informa que as mulheres são as que têm o maior impacto na renda: aumento de 52%. Isso não é por acaso. As mulheres foram as mais afetadas pelo desemprego e pelo acúmulo de tarefas durante a pandemia do coronavírus na América Latina.
Por que o auxílio é importante para essas mulheres?
“A importância do auxílio emergencial pra mim no momento eu tenho um filho, né? Não tenho com quem deixar meu filho para trabalhar” nos conta Mariana, militante da luta pelo auxílio emergencial. “Porque eu não tô podendo trabalhar, sem renda nenhuma, não recebo pensão dos filhos e 200 reais não dá pra sobreviver morando sozinha”, conta outra mãe anônima em luta contra o bloqueio injusto do seu benefício. Damiana conta que foi protestar pelo auxílio “pra tentar mostrar pro mundo inclusive pro Bolsonaro e os que acham que ele está certo que ninguém vai conseguir viver com 300 reais ele não sabe o que é acordar e ver seu filho pedindo um pão e você não poder dar, ele não sabe o que faltar uma mistura nem que seja um ovo ou uma salsicha pro seu filho”. Poderia pegar outros inúmeros vídeos em que se repetem falas similares de outras lutadoras. Vemos aqui um padrão. Vou ensaiar uma indicação.
Existe aqui uma recusa da responsabilidade individual e privada pelo cuidado com os filhos – a sociedade, a coletividade precisa ajudar a mulher a ter condições nas quais esse cuidado seja possível. Uma delas é a condição financeira: mesmo sem trabalhar para um patrão, mesmo sem um marido, é necessário dinheiro para cuidar dos filhos. Não é mais aceitável que as mães tenham que se virar em qualquer condição e dar um jeito e é aí que entra o depoimento público como forma de enfrentar a privatização da responsabilidade pela reprodução da vida. Nas palavras de Mariana: “eu digo a todos, não tenham vergonha de mostrarem seus rostos e dizerem, estou com problema, estou com contas a pagar, não tenho dinheiro, não tenho comida, isso não é vergonha, tá”? A experiência privada da pobreza e das dificuldades com o cuidado se torna pública, merece ser socializada e tratada coletivamente. Isso acontece porque o auxílio emergencial propiciou uma experiência concreta em que o cuidado com a vida durante a pandemia foi valorizado por si só.
Podemos dizer, então, que se ensaia uma demanda prática de reconhecimento e pagamento pelo trabalho doméstico não remunerado na luta pela continuidade do auxílio emergencial. Trata-se de uma luta com ampla legitimidade: sendo em sua essência essa política de garantia das vidas das mulheres trabalhadoras, 51% da população trabalhadora defende a sua continuidade contra uma campanha ininterrupta de toda a mídia pró-austeridade.